Por Marcos Aurélio da Silva no
GRABOIS
A
publicística brasileira, e não só aquela à direita do espectro
político, acostumou-se a se referir a Stalin como um dos grandes
assassinos da história. A julgar pelo livro de Domenico Losurdo agora
publicado entre nós, Stalin: história crítica de uma lenda negra,
tradução de Jaime Clasen, Rio de Janeiro: Revan, 2010, 378 págs. (com um
ensaio de Luciano Canfora), este ponto de vista está a demandar uma
profunda revisão. Isso se se quiser não apenas refletir sobre o uso
político a que a figura de Stalin serviu no Ocidente capitalista, mas
igualmente atentar para o que de mais atual há na historiografia que se
acercou do tema do “stalinismo”.
De fato, se o que se esperava da abertura dos
arquivos da ex-União Soviética era um mar de fatos que tornariam ainda
mais abomináveis a história do líder comunista, bem como do regime que
ajudou a construir, o livro de Losurdo, apoiado nas mais recentes
pesquisas, vem pôr por terra tais expectativas. Veja-se, por exemplo, o
caso das “execuções” de Stalin ao cabo dos anos 30, já bem avançada a
fase da coletivização forçada da agricultura. Demonstram as citadas
pesquisas que elas não alcançavam mais de 1/10 do que se dizia: é que os
ideólogos do anticomunismo, acrescenta o ensaio de Canfora, a elas
aduziram os milhões de mortos da II Guerra Mundial.
Vê-se como, a partir de um tal embuste, se logra associar, para consumo
de incautos, Stalin a Hitler, operação a que se entregou mesmo uma
autora como Hannah Arendt, que tendo elogiado a União Soviética de
Stalin no imediato pós II Guerra, termina por abraçar a idéia da
associação entre comunismo e nazifascismo − ambos totalitários,
sustentou. Na verdade, uma tese cara não só à ideologia da Guerra Fria,
mas do próprio ponto de vista fascista, insiste Losurdo, remetendo a uma
citação de Thomas Mann: “Colocar no mesmo plano moral o comunismo e o
nazifascismo, como sendo ambos totalitários, no melhor dos casos é
superficialidade, no pior dos casos é fascismo. Quem insiste nesta
equiparação pode bem considerar-se democrático, mas na verdade e no
fundo do coração já é... fascista...”.
Ora, a título de uma comparação apenas empírica, não é questão de
somenos opor as condições das prisões soviéticas àquelas dos campos de
concentração nazistas. Abundantes relatos demonstram que no país
comunista grassavam boas condições de vida – aliás, de algum modo
confirmando observação da própria Arendt, que notou não haver campos de
extermínio na URSS. É exemplo o presídio moscovita de Butirka, que em
1921 permitia que “os prisioneiros saíssem livremente da prisão”,
organizassem “sessões de ginástica matutina”, formassem “uma orquestra e
um coro,... um círculo com revistas estrangeiras e uma boa biblioteca”.
Ou ainda, no início dos anos 30, em plena virada staliniana, o exemplo
das colônias penais do extremo norte, que contavam com investimentos na
construção de hospitais, treinamento “a alguns detidos para a profissão
de farmacêutico e enfermeiro”, edificação de “empresas agrícolas
coletivas” para “suprir as necessidades alimentares”, e até escolas de
formação técnica, para ex-Kulaks “analfabetos ou semi-analfabetos”.
Por certo, em cada um dos casos, não é sem sentido falar de um espírito
de reabilitação, donde as tantas iniciativas inspiradas nas idéias de
Gorki, como a abertura “de salas cinematográficas e círculos de
discussão” e mesmo o pagamento “de um salário regular aos prisioneiros”.
E, se há tragédias conhecidas, como a dos exilados da ilha de Nazino
(Sibéria ocidental) em 1933, marcados pela fome, o que os fez se
alimentarem de cadáveres, não decorrem elas de uma vontade homicida como
quer fazer crer a militância anticomunista, mas antes “da falta de
programação”.
Insistindo ainda nas comparações, Losurdo lembra como um autor caro a
Hitler, o angloalemão Houston S. Chamberlein, sabia muito bem diferir
socialismo e nazismo, o primeiro filho “das idéias de confraternização
universal do século XVIII”, de “origem comum e da unidade do gênero
humano”, o segundo do século XIX, o “século das colônias” e das “raças”,
cujo “mérito” teria sido o de refutar a mitologia da origem comum e da
unidade do gênero humano a qual se apegavam os socialistas. Com efeito, e
até para não cair-se no engano de pôr na conta da psicopatologia de
Hitler as infâmias do nazismo (tendência observada em Roosevelt, nota o
autor), é preciso entender que o Füher tomou do mundo preexistente a
ele, o mundo dos impérios coloniais do século XIX, dois elementos
centrais, agora levados à radicalização: a) a missão colonizadora da
raça branca do Ocidente; b) a leitura da Revolução de Outubro como um
complô judeu-bolchevique que estimulava a revolta dos povos coloniais e
minava a hierarquia natural das raças. (Aliás, aqui se compreende bem o
porquê da implacável perseguição aos comunistas “arrancaremos de todo
livro a palavra marxismo”, diz Hermann W. Göring, ministro do interior e
segundo homem do regime : são os últimos a pôr em questão o projeto
imperial e racial do III Reich)
Quanta diferença, pois, entre o Hitler que chama o povo russo de
“animais ferozes” – Stalin seria um ser proveniente dos “infernos”,
confirmando o caráter “satânico” do bolchevismo − e diz ser destino do
povo ucraniano, como todos os povos subjugados, ficar à devida distância
da cultura e da instrução, inclusive sem saber “ler e escrever”, e o
Stalin que, posto diante da miséria extrema legada ao povo pelo
czarismo, se põe à tarefa da elevação do nível de vida e da emancipação
geral de todos os soviéticos. São exemplos, já em meados dos anos 30, o
desenvolvimento de nações até então marginalizadas, por meio de ações
afirmativas, a equiparação dos direitos jurídicos entre homem e mulher, o
surgimento de sólido sistema de proteção social com pensões,
assistência médica, proteção das grávidas, abonos familiares, o
desenvolvimento da educação e da esfera intelectual em seu conjunto, com
a extensão de uma rede de bibliotecas e salas de leitura e a difusão do
gosto pelas artes e poesia. Além de importante expansão e modernização
da vida urbana, com a construção de novas cidades e a reconstrução das
velhas.
Responde por essa grande transformação operada pelo país saído da
revolução, certamente, a grande popularidade de que desfrutou Stalin,
continuada mesmo após o biênio do Grande Terror (1937-1938), o que não
se explica simplesmente pela censura e repressão de Estado, acentua
Losurdo, mas pelas chances de promoção social existentes. Basta lembrar a
ascensão dos stakanovistas, tornados diretores de fábricas, bem como a
ampla mobilidade vertical observada no exército. Aliás, conhecendo o
progresso social da Rússia soviética, vem a tempo notar que Stalin
assinala ser o regime de Hitler, com seu pisoteio sobre o direito dos
intelectuais, dos operários, dos povos, com o desencadeamento dos
pogroms medievais contra judeus – os ataques populares de violência −,
uma cópia do reacionário regime czarista.
Sabemos que a retórica que associa o movimento vitorioso em Outubro de
1917 e o nazismo aparece também nas referências ao “pacto” de não
agressão firmado com a Alemanha hitlerista em agosto de 1939 – o “pacto”
Molotv-Ribbentrop. Ora, não sendo puro ardil anticomunista, sustentar
este ponto de vista é não conhecer minimamente a geopolítica que
precedeu a II Grande Guerra, ou mesmo todo o contexto geopolítico que se
abre com a Revolução de 1917.
De fato, assinala Canfora, de algum modo o “pacto” está em linha com a
política de relações internacionais da URSS aberta por Lenin – e ao lado
do qual se colocou Stalin − através da paz de Brest-Litovsk, assinada
com a Alemanha em 1918, qual seja, a de que “os imperialistas se
massacram entre eles, nós ficamos de fora e nos fortalecemos”. Por outro
lado, terminada a I Guerra, a política de frentes – ou grandes alianças
democráticas − a qual se entregou o país comunista, aprovada no III
(1921) e IV (1922) Congresso do Komintern, viu-se constantemente
sabotada por França e Inglaterra (mas também – e com alguma razão − pela
oposição trotskista nas colônias). Já em 1925 o primeiro país se
aproxima da Alemanha através do tratado de Locarno (Suíça), isolando a
URSS, ao passo que em 1926 é a vez da Grã-Bretanha romper relações
comerciais e diplomáticas com o país comunista, convidando a França a
fazer o mesmo. E, às vésperas da Guerra, os dois países, já tendo
abandonado a República espanhola − ajudada militarmente apenas pelos
soviéticos e pelas brigadas internacionais –, que caía ante o fascismo,
se desinteressam por um acordo com a URSS contra a Alemanha. Além disso,
desde o golpe de Estado do fascista Pilsudki em 1926, a Polônia
apresentava-se como um inimigo declarado da URSS − notadamente empenhada
em retirar-lhe a Ucrânia −, sendo que desde 1934 está abertamente
subordinada à política alemã. Enquanto a leste o Japão era uma ameaça
real, aliás contida na medida em que o “pacto” permitiu aos soviéticos
enviar armas e munições para que a China se protegesse do país nipônico –
até Pearl Harbor abastecido em petróleo e gasolina pelos EUA, vale
notar −, como observou Mao Zedond.
Posto o quadro acima, difícil dizer, como sustenta o artigo de Canfora,
que o “pacto” não fosse, e a despeito de continuar o pragmatismo
iniciado em Brest, uma forma de ganhar tempo para “preparar-se” melhor. A
tese, aliás, é cara a Trotski e Kruchiov, a quem Canfora parece seguir
também quanto ao despreparo das linhas soviéticas. Mas como não
aceitá-la sabendo que Stalin tinha bem presente a análise que fez o
general Foch pouco depois da assinatura do Tratado de Versalhes, o
Tratado que “pôs” fim a I Guerra Mundial? Qual seja, a de que não se
tratava da paz, mas “apenas de um armistício por vinte anos”. Quanto às
linhas soviéticas, é preciso ater-se à geografia. De fato, a despeito
das enormes dimensões do Exército Vermelho, o sucesso inicial das
unidades alemãs se beneficiou da ampla extensão do front (1800 milhas) e
da escassez dos obstáculos naturais além das cidades muito
distanciadas entre si, e para as quais convergiam estradas e ferrovias, o
que deixava ao inimigo inúmeras alternativas de infiltração.
Mas tratar da luta contra o nazifascismo é, também, para Losurdo,
extrair uma periodização que explique a era Stalin − ou mesmo toda a
história russa. Com efeito, seria ela a da conclusão de um segundo
grande período de desordem da história russa. O primeiro deles, que
compreende o século XVII, encerrara-se com a subida de Pedro O Grande ao
trono (1689). Já o segundo tem início com a I Guerra Mundial, seguindo
até o reforço do poder de Stalin e a aceleração da industrialização
pesada do final dos anos 20 que ele levou a efeito, bem como a
“ocidentalização” que lhe corresponde.
Ora, para Losurdo, a marca desse segundo período não é a de um regime
totalitário, mas, antes, a de um estado de exceção, ou uma ditadura
desenvolvimentista. Esta responde a uma guerra civil prolongada, cujo
início foi a luta contra o czarismo e as potências aliadas entre 1914 e
fevereiro de 1917, mas que segue na vitória sobre os mencheviques em
outubro de 1917 e com as divergências dentro do grupo dirigente
bolchevique após a morte de Lenin. Tudo no contexto de uma crescente
hostilidade internacional, ou do perigo iminente, para lembrar uma noção
do filosofo estadunidense Michael Walzer, que Losurdo utiliza − não sem
uma certa restrição, deve-se notar − para dar conta do universo
concentracionário da era Stalin. Daí poder-se compreender, pois, as
seguidas ações insurrecionais como a tentativa de golpe feita por
Trotski durante o desfile pelo décimo aniversário da revolução as
tramas em ambientes militares como as que parecem ter atraído o
general Tukatchevski ou ainda os muitos assassinatos como o que
vitimou Kirov, aliás hoje já não atribuível a Stalin. A propósito, se se
trata de falar dos processos de Moscou, o novo material que a abertura
dos arquivos russos tornou disponível tem permitido concluir que eles
“não foram um crime sem motivo e a sangue frio, mas a reação de Stalin
durante uma aguda luta política”.
Antes que se diga que o livro é pura apologia do socialismo à moda
soviética, ou uma hagiografia de Stalin, bom notar a crítica teórica a
que ele submete alguns dos fundamentos do marxismo-leninismo ou, para
dizer mais corretamente, do marxismo em todo o seu conjunto. No
fundamental, Losurdo debruça-se aqui sobre a dificuldade deste quanto a
desapegar-se do universalismo abstrato. É a partir daqui, anota, que
emergem os tantos problemas com que se deparou a construção da nova
sociedade em esferas como o mercado e o dinheiro, o Estado, a nação, a
norma jurídica, a família. No fundo, tratou-se da dificuldade, tão comum
no âmbito das esquerdas, em passar do universal ao particular. Ora, o
curioso é que aqui, a necessidade de dar soluções a questões muito
concretas, fez de Stalin o que logrou esboçar importantes avanços − e
isso, vale notar, se aproximando de teóricos que, no mais das vezes, são
chamados para criticá-lo (Gramsci, Hegel, o próprio Marx) −, conquanto
mesmo ele tenha ficado a meio caminho.
Veja-se a questão do mercado e do dinheiro. Enquanto o campeão do
reformismo, Karl Kautsky, já em 1918, se entrega à crítica da
permanência da produção de mercadorias e da propriedade privada da terra
– a cargo dos intelectuais e do proletariado, segundo ele −, num tom
que nada o distingue, por exemplo, da crítica extremista de Trotski à
NEP − que fala de restauração do capitalismo sob o comando de uma
burocracia para apelar à supressão do dinheiro e de qualquer forma de
mercado –, Stalin, em relatório de 1934 ao XVII Congresso do PCUS,
insiste na necessidade de se prevenir contra “as fofocas
esquerdistas..., segundo as quais o comércio soviético seria um estágio
ultrapassado e o dinheiro deveria ser logo abolido”. Ora, no lugar de um
mercado ou uma economia monetária em geral, trata-se aqui da
“construção de um sistema determinado de produção e distribuição da
riqueza social”.
Aliás, do anterior decorre outra questão não menos importante, e nem
sempre bem compreendida, qual seja, a das diferenças de rendimento no
socialismo. Stalin tem bem presente, adverte Losurdo, a referência de
Marx no Manifesto quanto à ilusão de que o socialismo seria o reino de
um “ascetismo universal” e do “igualitarismo grosseiro”: “O nivelamento
no campo das necessidades e da vida pessoal é um absurdo pequeno-burguês
digno de qualquer seita primitiva de asceta, não de uma sociedade
socialista organizada no espírito marxista, porque não se pode exigir
que todos os homens tenham necessidades e gostos iguais... Por
nivelamento, o marxismo entende não já o nivelamento no campo das
necessidades pessoais e condições de vida, mas a destruição das
classes”, afirma. De fato, estamos diante da aporia posta por Hegel na
Fenomenologia do Espírito, segundo a qual “uma satisfação igual das
necessidades diferentes dos indivíduos” leva a “uma desigualdade em
relação... à distribuição dos bens’” (à quota de participação), ao passo
que “uma ´distribuição igual` dos bens... torna desigual... a
´satisfação das necessidades`”. Aporia a qual Marx fez corresponder,
respectivamente, as etapas socialista e comunista da divisão do
trabalho, sendo que na última delas, o estágio alcançado pelas forças
produtivas torna sem importância a desigualdade que está sempre
presente, pois.
Questão semelhante se põe quanto ao Estado e a nação. Enquanto Trotski,
radicalizando o universalismo abstrato, acusa a construção do socialismo
na Rússia de nacional-reformista, Stalin irá sublinhar a necessidade de
ligar “um nacionalismo sadio, corretamente entendido, com o
internacionalismo proletário”, uma advertência que em tudo lembra a
distinção de Gramsci entre cosmopolitismo e internacionalismo, o último
devendo saber “ser ao mesmo tempo ´profundamente nacional’”. Ora, Stalin
tem presente que a luta de classe se configura agora como o compromisso
de desenvolver economicamente e tecnologicamente o socialismo na URSS,
que assim daria sua contribuição à causa internacionalista da
emancipação. Fato ainda mais relevante quando se tratou de resistir aos
“planos de escravização do imperialismo nazista”, o que significa dizer
que “a marcha da universalidade passava através das lutas concretas e
particulares dos povos decididos a não se deixar reduzir à condição de
escravos ao serviço do povo hitleriano dos senhores”.
Mas não se trata apenas de uma determinada conjuntura. A questão parece
atravessar mesmo todo o problema das transições, como o demonstram as
referências às reflexões do idealismo alemão acerca da Revolução
Francesa. Kant alertou, destaca Losurdo, quanto a uma “universalidade
excessivamente extensa”, afirmando que “o apego ao próprio país” deve
conciliar-se com “a inclinação a promover o bem do mundo inteiro”. E
Hegel, desenvolvendo a mesma linha de pensamento, celebra “como uma
grande conquista histórica a elaboração do conceito universal de homem
(titular de direitos ‘enquanto homem e não enquanto judeu, católico,
protestante, alemão, italiano, etc.’)” sem, todavia, deixar de
acrescentar que esta celebração “não deve desembocar no ‘cosmopolitismo’
e na indiferença ou oposição com respeito à ‘vida estatal concreta’ do
país do qual se é cidadão”.
Ora, mas a questão do Estado e da nação é também a questão das relações
entre democracia e socialismo. Uma questão a qual não descuidou Lenin,
lembra o autor remetendo-nos a uma passagem do líder bolchevique: “quem
quiser caminhar para o socialismo por um caminho que não seja a
democracia política, chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e
reacionárias, tanto do ponto de vista econômico como político”. Mas de
que modo o universalismo abstrato de que acima se falou teve aqui também
seus efeitos?
O apego à tese da extinção do Estado, eis o ponto problemático, acusa
Losurdo. Com efeito, fortemente influenciados pelo anarquismo,
diferentes revolucionários se entregaram à crítica acerba de toda a
forma de poder − incluindo o desprezo ao “parlamento, aos sindicatos,
aos partidos, às vezes até ao partido comunista, ele mesmo afetado pelo
princípio da representação e, portanto, pelo flagelo da burocracia”.
Trotski é o expoente máximo dessa crítica, sabemos, mas ela afeta a
todos sendo mesmo ele, por exemplo, ao lado de Lenin, objeto de
rejeição por Alexandra Kollontai nos primeiros anos da Rússia soviética.
Aliás, lembra o autor, antes de insistir, em Melhor menos, mas melhor,
na tarefa de “edificação do Estado”, do “trabalho administrativo”, para o
qual dever-se-ia contar com “os melhores modelos da Europa ocidental”,
mesmo Lenin, em O Estado e a revolução, defende necessitar a fase pós
revolucionária “unicamente de um Estado em vias de extinção”.
É a Constituição de 1936 que inicia um rompimento com este messianismo −
segundo o qual “´o direito é ópio para o povo` e ´a idéia de
constituição é uma idéia burguesa`” −, assinala Losurdo. E é Stalin que
sublinha não se contentar esta Constituição apenas “em fixar os direitos
formais dos cidadãos”, antes logrando deslocar “o centro de gravidade
para a garantia desses direitos, para os meios de exercício desses
direitos”, entre eles a “aplicação do sufrágio universal, direto e
igual, como escrutínio secreto” (o que para Trotski não passava da
reaparição de uma instituição burguesa). E, ainda em 1938, convocando a
que não se transformasse a lição de Marx e Engels “num dogma e numa
escolástica vazia”, elabora que, entre as funções do Estado socialista,
“além daquelas tradicionais de defesa do inimigo de classe no plano
interno e internacional”, está a função do “trabalho de organização
econômica e o trabalho cultural e educativo dos órgãos” do Estado. Isto
com a “finalidade de desenvolver os germes da economia nova, socialista,
e de reeducar os homens no espírito do socialismo”, devendo mesmo a
“função de repressão” ser “substituída pela função de salvaguarda da
propriedade socialista contra os ladrões e os dissipadores do patrimônio
do povo”.
Certamente, estas declarações estão em contradição com o Grande Terror e
a dilatação do Gulag do final dos anos 30. Não obstante, se a ditadura
do proletariado, como fixou Lenin em O Estado e a Revolução, é o poder
que não se vincula a nenhuma lei, Stalin, no imediato pós II Guerra,
declara que Bulgária e Polônia podem “realizar o socialismo de modo
novo, sem a ditadura do proletariado”, e que mesmo na URSS, se “não
tivéssemos tido a guerra, a ditadura do proletariado teria tomado um
caráter diferente.” Algo esboçado após a vitória sobre os Kulaks, como
se pode ver na rejeição das emendas à Constituição que queriam “privar
dos direitos eleitorais os ministros do culto, os ex-guardas brancos,
todos os ´ex` e as pessoas que não desempenham um trabalho de utilidade
pública”, bem como a rejeição da proposta de “proibir as cerimônias
religiosas.”
Sem dúvida, insiste Losurdo, toda a teorização em torno das funções do
Estado, “em si uma novidade essencial”, ficou a meio caminho. Se Stalin
fala da conservação do Estado na fase comunista, o faz ainda
condicionada ao “cerco capitalista”, ao “perigo de agressões armadas do
exterior” (mesmo a questão da língua nacional, onde deu enorme
contribuição, insistindo diferir ela “de maneira radical de uma
superestrutura”, já que não criada “por uma classe qualquer, mas pela
sociedade inteira”, é ainda pensada como sujeita a extinção nesta fase).
Ora, é aqui que, para Losurdo, se impõe uma valorização de Hegel. Mais
precisamente do Hegel que falou de aprendizagem de governo ao se
debruçar sobre a Revolução Francesa e sua congênere inglesa do século
XVII no fundamental, do Hegel que falou da necessidade dialética de
dar “conteúdo concreto e particular à universalidade, pondo fim à
perseguição louca da universalidade nas suas imediatez e pureza”.
Eis aqui também a raíz da tragédia que foi o Grande Terror de 1937-38,
ou da coletivização forçada da agricultura ao cabo dos anos 20 − e para a
qual contou mesmo o messianismo de parcela não desprezível da
população, saudosa do igualitarismo da fase do comunismo de guerra −,
raiz, enfim, da dificuldade de avançar em direção à democracia
socialista. Lições, aliás, inescapáveis se se quiser entender a evolução
dos países socialistas que aí estão (China, Vietnã), empenhados na
construção tanto de uma neo-NEP, com o objetivo maior de desenvolver as
forças produtivas nacionais, quanto de todo um conjunto de regramento
jurídico que só muito forçosamente pode ser interpretado como simples
democratização formal. Uma evolução, diga-se, que em nada lembra a
apostasia gorbachoviana − bem demonstrada no ensaio de Canfora −, como
gostam de fazer crer não só os mais messiânicos no interior da esquerda,
mas a própria direita, sempre pronta a decretar a morte do socialismo.
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Marcos Aurélio da Silva é Prof. dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia da UFSC.