sábado, 28 de abril de 2012

Moçambique em versos



Escritores africanos de expressão portuguesa
Os escritores moçambicanos Craveirinha e Knopfli; entre eles, o angolano Pepetela

Editora da UFMG lança coleção com os principais poetas de Moçambique; os três primeiros volumes trazem José Craveirinha, Rui Knopfli e Luís Carlos Patraquim

Por Henrique Marques-Samyn ((*)
via PORTAL VERMELHO


Os três autores são alguns dos nomes mais representativos da poesia moçambicana de expressão portuguesa, que conta ainda com nomes como Rui de Noronha (1909-1943), considerado precursor; Noémia de Sousa (1926-2003) e Eduardo White (1963), entre outros. Dirigida por Ana Mafalda Leite, a coleção Poetas de Moçambique pretende apresentar ao público brasileiro a moderna poesia moçambicana

Em tempos de guerra, a poesia, mais que possível, é necessária. Que tematize o próprio conflito não é algo essencial; fundamental é que trate do assunto fulcral da literatura de todos os tempos: a experiência humana, assim resgatando os sentidos solapados pela força das armas.

A Catulo não interessava a guerra civil, mas aquela que cinde o homem enamorado; embora na obra de Dante haja referências aos conflitos que dividiam Florença, associá-la unicamente a isso encerraria um imperdoável reducionismo; e, se Camões figurou a si mesmo portando a espada em uma das mãos e, na outra, a pena, o que esta registrava podiam ser tanto feitos bélicos (como em tantas passagens d’Os Lusíadas, porventura espelhados em suas próprias vivências) quanto o lirismo amoroso dos sonetos.

Em 25 de setembro de 1964, tinha início (nos registros oficiais, ao menos) a Guerra da Independência de Moçambique — mesmo ano em que José Craveirinha publicava Xigubo, seu primeiro poemário; não obstante, já na década de 1950 a resistência se havia organizado em grupos orientados por ideais nacionalistas — decênio em cujo ano derradeiro estreava literariamente Rui Knopfli, com O país dos outros. Se muito insinuam já os títulos das obras (Xigubo é uma dança tradicional que veio a representar a resistência colonial moçambicana), os poemas que delas constam não frustram essas expectativas.

Knopfli e Craveirinha nasceram literariamente como cronistas poéticos de uma nação apenas sonhada, cuja construção suas trajetórias líricas acompanharam, indagando insistentemente sobre sua identidade. Dessa tarefa participaria também Luís Carlos Patraquim, cujo poemário de estréia, Monção (1980), renovaria esteticamente a literatura moçambicana sem recusar a dimensão política da palavra poética.

A esses três autores são dedicados os primeiros volumes da coleção Poetas de Moçambique, série publicada pela editora UFMG e dirigida por Ana Mafalda Leite, professora na Universidade de Lisboa que viveu a infância e parte da juventude em Moçambique, chegando a iniciar estudos universitários em Maputo. Ana Mafalda conhece de perto as literaturas africanas: lecionou em diversos países do continente (Cabo Verde e Senegal, entre outros, inclusive Moçambique); é autora de estudos fundamentais sobre o assunto — A poética de José Craveirinha (1990), Modalização épica nas literaturas africanas (1996) e Oralidades & escritas nas literaturas africanas (1998) são alguns dos títulos que constam de sua produção bibliográfica, recentemente complementada com Literaturas africanas e formulações pós-coloniais (2003).

Valioso adendo para essa trajetória é o fato de Ana Mafalda ser também escritora, autora de uma obra poética que não se esquiva à tarefa de reelaborar as vivências moçambicanas; trata-se, portanto, de alguém que conhece a literatura em suas múltiplas dimensões como poucos apta a eleger os nomes certos para colaborar nessa empreitada editorial. Com efeito, os responsáveis pelos volumes que abrem a coleção elaboraram obras de valor impecável.

José Craveirinha

À própria Ana Mafalda Leite coube a organização do volume dedicado a José Craveirinha. Nascido em 1922, falecido em 2003, Craveirinha publicou cinco livros em vida; sua obra é constituída também por volumes póstumos, poemas dispersos e por um numeroso espólio que permanece inédito. O já mencionado Xigubo (1964), obra com a qual estreou o poeta e que abre a compilação, é adequadamente qualificado como uma “rapsódia anticolonialista” por Emílio Maciel, autor da biobibliografia inclusa no volume.

“Xibugo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência levantam os braços para o lume da irmã Lua

e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos na margem do rio”,

 
escreve o poeta, na lírica imagem sintetizando o ímpeto que percorre toda a obra: a síntese de uma pluralidade de vozes e identidades que se reconhecem como pertencentes a uma nação por haver.


“Vim de qualquer parte

de uma nação que ainda não existe”,

afirmam os primeiros versos de Poema do futuro cidadão. Poesia panfletária, diriam alguns; a poesia possível, diriam outros, estes mais cientes da missão a que se dedicava, na hora de urgência, um poeta que, nas últimas obras, construiria textos de impecável lirismo.

As modulações da obra de Craveirinha talvez possam ser qualificadas como as múltiplas vozes de um homem que jamais se fechou ao mundo. O discurso dilatado de Xigubo representa a primeira irrupção de uma fala há muito silenciada — e que não expressa a vontade de um, mas a de muitos homens, ainda soantes em Karingana ua Karingana (1974). Depois do grito, o silêncio: a contenção lírica do poeta que cantou o futuro, mas que percebe um presente feito de perdas. A maior delas: Maria, a esposa falecida em 1979, cujo nome intitula o pungente livro em que lemos um poema como Memória dos dois

“Ambos

juntos na mesma memória.

Eu

o Zé que não te esquece.

Tu

a Maria sempre lembrada”.


 
O tom afirmativo dos primeiros livros cede espaço a uma poética de indagações, enquanto variações da escrita de um poeta que permanece fiel a si mesmo.

 
“Cada homem é sofisma

Bem engendrado”,


 
afirma um dos Poemas eróticos (2004), derradeiras páginas de uma obra que jamais recusou cantar o homem em sua grandeza e em sua miséria, em seu amor e em seus vícios — e que, por isso mesmo, acolhe em si as contradições da condição humana.


Rui Knopfli

Rui Knopfli, dez anos mais jovem que Craveirinha, morreu mais cedo, em 1997. Deixou oito livros, todos representados na coletânea organizada por Eugénio Lisboa, que nela incluiu um posfácio assinado por Roberto Said.

Juízos apressados não tardaram a ver em Knopfli uma espécie de antípoda de Craveirinha. Filho da burguesia, descendente de suíços e portugueses, estreava com um livro em cujo título — O país dos outros (1959) — não seria difícil sentir uma provocação, agudizada pelos poemas que o compunham: onde os cânticos de guerra, os discursos inflamados, a convocação aos heróis? Em vez disso, Knopfli apresentava uma poesia de tom reflexivo, composta com impecável rigor formal, que dialogava explicitamente com a tradição literária ocidental. Injustas, no entanto, as acusações de que o poeta voltava as costas para Moçambique; a par dos diálogos com Fernando Pessoa e Manuel Bandeira, Rui Knopfli publicava poemas de teor francamente político. Leia-se A melhor das distracções, que encena a fala de um grão-senhor

“marajá, bey, khan,

um nababo qualquer desses com poderes

de Vida e Morte”


 
que, sem pudor, afirma:


“Afastei enfadado

as inomináveis iguarias que me foram servidas

e nem sequer me dignei

olhar as dezasseis virgens sortidas,

fruto do último saque.

Onde me diverti a valer,

foi com as línguas que mandei cortar”.

 

Leia-se Casamento de conveniência, em que assoma a crítica
aos costumes:

“Meus pais não querem que ame

a quem amo.

Pretendem que me case contigo,

Juventina.

[...]

Dão-me um automóvel e uma casa

pra que case contigo,

Juventina.

Tens um nome que te quadra à figura,

rapariga,

e trazes intacto o selo necessário.

[...]

Aceitarás com submissão

que te mande à merda de quando em vez

e não farás muitas ondas.

Sei que não pedes mais,

É pegar ou largar,

Juventina!”.

 

Visitando a tradição literária, porque sempre falou de si, Rui Knopfli sempre falou de Moçambique, embora nele tantas vezes a nação não se reconhecesse. Ressalte-se que, da obra de estréia ao derradeiro O monhé das cobras (1997), seus livros mantêm uma elevadíssima qualidade estética; não há altos e baixos, mas irrupções que se podem igualar às grandes obras da poesia de todos os tempos — como o magistral O deserto, de Mangas verdes com sal (1969), poema que sintetiza, com singular força lírica, os perenes questionamentos existenciais humanos.

Luís Carlos Patraquim

A obra fundacional de Craveirinha e Knopfli tem prosseguimento com a poética renovadora de Luís Carlos Patraquim (nascido em 1953), cuja obra foi antologiada para a coleção por Carmen Lucia Tindó Secco. Como Craveirinha, Patraquim se debruça sobre a terra e as tradições moçambicanas; como Knopfli, engendra um diálogo franco com múltiplas vozes da literatura ocidental. Não obstante, sua obra não se reduz à assimilação dos que o precederam: Patraquim não se esquiva à tarefa primordial do poeta, que é desvelar para o lirismo novas sendas. No posfácio ao volume, observa Cíntia Machado de Campos Almeida tratar-se de uma poesia construída em torno de uma tríade temática: “a memória, o erotismo e a reflexão metapoética”; percebe-se, assim, como a trajetória inaugurada por Monção (1980) já dispensa o dever de poetizar a terra, em vez disso assumindo como pressuposto uma força lírica que é reelaborada pela subjetividade poética para a construção de uma dicção nova.

Notável em sua escrita é, particularmente, a relação com o espaço, ora enquanto referencial geográfico que expande os limites do exercício poético — ressalte-se, a esse respeito, o sentido fundacional de Noções de geografia, espécie de escorço cartográfico do lirismo:

“a sul

implanto uma cartografia sem limites

traço e compasso

depois da madrugada

de ti

um rosto iridescente

alastra o voo claro

das mãos

ao sul

descobrimos

vozes abertas

sem oclusão

e mastigamos água”

 

ora enquanto âmbito imagético que enseja a eclosão mesma da poesia; vejam-se as Quatro meditações na margem ao longo do Zambeze, do recente Pneuma (2009), em cuja segunda parte lemos:

“Senhora, eu não vi os três jacarés

imóveis na margem,

A luz, espelho da carne branca

E a boca metafísica,

Sua canoa vogando o desenho do som

E a elipse das asas;

Vi o rio que rilhava e seus dentes,

O canavial do Tempo,

nodoso e debruçado sobre o impulso líquido

Como o primeiro timbre evolando a cor,

O Sangue do início e a bolsa rompida

Para a convulsão do mundo”.


 
Não se limitando a falar sobre Moçambique, Patraquim cede a voz à terra: “concebe as paisagens como exímias contadoras de (suas próprias) histórias”, observa Cíntia Almeida. E, esse modo, contribui para a construção de uma tradição poética que, conquanto jovem, já se revela inegavelmente pujante.

(*) Henrique Marques-Samyn é escritor e pesquisador da UERJ

Os livros

José Craveirinha, Antologia poética. Org.: Ana Mafalda Leite, Editora UFMG

Rui Knopfli, Antologia poética. Org.: Eugénio Lisboa, Editora UFMG

Luís Carlos Patraquim, Antologia poética, Org.: Carmen Lucia Tindó Secco, Editora UFMG


Fonte: Rascunho, o jornal de literatura do Brasil, fevereiro de 2012

Primavera Árabe: ameaça aos direitos da mulher?

120428 mulher arabeRNW - “A Primavera Árabe é uma grande chance para os direitos das mulheres. Mas também existe o risco real de que conquistas do passado sejam revertidas.” Em que direção irá, segundo Liesl Gernholtz, diretora de direitos da mulher da Human Rights Watch, é imprevisível.


Ainda é muito cedo para fazer comentários fundamentados, acredita Gerntholz, que é advogada especialista em direitos da mulher, mas há vários indícios. “Existe a chance de que as mulheres não possam colher os frutos da democracia que substituirá os regimes derrubados.”
O motivo para isso é que os partidos islâmicos conservadores tiveram vitória substancial nas eleições no Egito e na Tunísia. “Eles defendem tradições que nem sempre apoiam os direitos da mulher. Há preocupação e mesmo medo de que estas forças conservadoras queiram voltar atrás nos limitados progressos que as mulheres conseguiram fazer nesses países.”

Clima desfavorável
 
Um outro ponto é que nem todos os países têm um forte movimento feminino. “Na Líbia os movimentos sociais foram proibidos por 42 anos. Agora têm que ser construídos do zero. Não há nenhuma experiência na luta pelos direitos da mulher. As mulheres ainda não têm habilidades para estabelecer organizações, tomar parte no debate público ou para serem eleitas para o parlamento. É difícil encontrar confiança e coragem para enfrentar essa aventura. Tradicionalmente, elas sempre foram mantidas fora do debate social e da política.”
Gerntholz constata que em muitos países falta um clima favorável para as mulheres, que têm grande dificuldade em exercer seus direitos.
“No dia 8 de março mulheres egípcias fizeram uma marcha na praça Tahrir, no Cairo, para celebrar o Dia Internacional da Mulher. Elas foram atacadas, insultadas e intimidadas. Lhes disseram que não tinham nada que procurar na rua e que deveriam ficar em casa. A revolução tinha acabado. E isso foi só um mês depois dos protestos populares, nos quais se pedia mais liberdade, e não muito depois da queda de Mubarak. Mas quando as mulheres pedem a mesma liberdade, são mandadas para casa.”

Emancipação feminina
 
Apesar disso, Gerntholz também vê sinais que dão esperança. As mulheres estão tentando mudar a maré. Egito e Tunísia têm movimentos fortes de emancipação feminina. “É possível que elas se fortaleçam com a transição para a democracia. Na Tunísia, pelo menos, já foi estabelecido um sistema de quotas. Metade das cadeiras no parlamento são ocupadas por mulheres. Elas também estão participando da elaboração da nova constituição.”
Mas Gerntholz está principalmente impressionada com as mulheres na Líbia. Um mês depois da queda de Kadhafi elas já haviam organizado uma conferência sobre direitos da mulher, da qual Gerntholz participou. “Elas discutiram sobre o que querem conquistar, quais são suas expectativas e principais desafios. Portanto, as mulheres com certeza vão lutar por seus direitos e estão se organizando. Embora não seja fácil, porque elas não têm acesso fácil ao poder e aos tomadores de decisão.”

Sharia
 
É certo, constatou Gerntholz durante sua visita à Líbia, que muitas mulheres lá optam por direitos compatíveis com a sharia, a legislação islâmica. “Elas acreditam que a sharia deve ser a base para a constituição. São em primeiro lugar muçulmanas. Sua religião deve ser determinante para a maneira como vivem. Este é um sentimento generalizado de um grupo de mulheres que certamente não é homogêneo. São mulheres de diferentes camadas da população, com pouca ou muita escolaridade, e de todas as idades.”
As mulheres líbias acham que a sharia não vai contra os direitos da mulher. Se as leis islâmicas forem interpretadas da maneira correta, elas apoiam estes direitos. “Segundo elas, a sharia não trata do apedrejamento de mulheres e de poligamia. Nem sobre o casamento de crianças. Para elas, estas não são leis islâmicas, mas atos ligados à tradição e à cultura.”

Direitos humanos
 
De acordo com Gerntholz, não há nada errado com este feminismo islâmico. Ele apenas é interpretado de um ângulo religioso, assim como também acontece com feministas católicas. “Se você é capaz de aplicar coisas como religião, cultura e tradição de uma maneira positiva e não discriminatória, acho que não é mau. Mas se isso for usado para excluir pessoas e reprimir, aí é realmente ruim.”
A introdução da sharia não traz necessariamente problemas, acredita Gerntholz. Desde que atenda aos princípios dos direitos humanos universais, nos quais as mulheres são iguais aos homens. Para isso é preciso assegurar que países como a Líbia, que assinaram estes direitos, também cumpram estes princípios.
Mas só o tempo dirá que influência a eventual introdução da sharia terá sobre os direitos das mulheres.

A nova Guerra Fria, agora na internet


Por Carlos Castilho no OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA

Os Estados Unidos ganharam a Guerra Fria nuclear sem disparar um tiro, mas podem estar perdendo a versão cibernética do conflito pela supremacia mundial. E acredite quem quiser: a nova superpotência virtual  é a China, apontada pelos especialistas ocidentais em segurança cibernética como a maior incógnita contemporânea no que se refere a políticas de uso da internet.
Os norte-americanos não admitem publicamente, mas o jornal inglês The Guardian afirmou na série "Batalha pela Internet" que o número de chineses especialistas em crackear [1] computadores e redes virtuais é maior do que o dos engenheiros norte-americanos dedicados ao desenvolvimento de novos programas e equipamentos para computação. Os crackers chineses são conhecidos também como cyber jedis (guerreiros cibernéticos), numa analogia com os guerreiros do bem na série Guerra nas Estrelas.
No fundamental, a nova versão da Guerra  Fria é essencialmente uma guerra por informações onde as armas convencionais passaram a um segundo plano, para desespero de toda a multimilionária indústria bélica mundial. Os jedis chineses, em sua esmagadora maioria protegidos pelo governo de Beijing, vasculham o sistema financeiro ocidental, as redes de comunicações privadas e governamentais, descobrem vulnerabilidades em bancos de dados, em complexos de energia e transporte, bem como, é óbvio, nos serviços de inteligência militar.
A grande diferença em relação à Guerra Fria nuclear é que agora a busca por informações não está voltada para o botão vermelho da retaliação atômica, mas a um complexo e ainda pouco estudado sistema de tomada de decisões no qual os indivíduos estão sendo substituídos por processos  impessoais, como as bolsas de valores.  A balança do poder mundial não depende mais exclusivamente de decisões tomadas na Casa Branca ou no Palácio do Povo, em Beijing.
A descoberta do poder chinês na internet assustou os governos ocidentais, em especial os Estados Unidos e a Inglaterra, onde os seguidores da velha Guerra Fria ainda são muito influentes. Se até a queda do Muro de Berlim (1989) , os espiões e cientistas nucleares eram os grandes alvos dos estrategistas soviéticos e norte-americanos, agora todas as atenções se voltam para jovens entre 17 e 30 anos, a faixa etária dos modernos guerreiros cibernéticos, um ramo dos nerds (jovens fanáticos por computação).
Em 2011 foi criado na Inglaterra um projeto chamado Cyber Security Challange (Concurso sobre Segurança Cibernética)  destinado a atrair nerds  para o campo da Guerra  Fria cibernética.  Logo na primeira edição, no ano passado, quatro mil jovens de ambos os sexos se inscreveram para a competição, que não chegou a ser divulgada na imprensa. No ano passado, o vencedor foi Jonathan Millican, estudante do primeiro ano de engenharia eletrônica, com 19 anos incompletos.
O julgamento final da versão 2012 Cyber Security Challange deveria ter ocorrido em março, mas teve que ser adiado porque o site do concurso foi crackeado, segundo os britânicos, por cyber jedis chineses. Os prêmios previstos no concurso variam desde bolsas de estudo até inscrição grátis em eventos ligados à segurança cibernética. Não há prêmios em dinheiro, mas segundo o jornal The Guardian, o emprego em empresas do setor é imediato.
São garotos como Jonathan que passaram a ser observados de perto por estrategistas mililtares que acabam de receber plenos poderes do presidente Barack Obama e do governo inglês para desenvolver uma estratégia antichinesa na guerra pelo controle da internet. Segundo a Casa Branca, cerca de 60% das empresas norte-americanas que tiveram seus sites invadidos por crackers acabaram pedindo falência.  
Até agora a principal estratégia do Pentágono era criar muros virtuais (firewall) contra invasões de redes de computadores, mas os especialistas já se deram conta que a defesa passiva é inútil, porque a criatividade dos cyber jedis é quase infinita. Para cada muro criado surgem imediatamente dezenas de opções sobre como derrubá-lo. Por isso a tendência é investir nas ações ofensivas, atacando os centros onde se aglutinam os guerreiros virtuais.
O problema é que a dispersão é enorme nessa área, da mesma forma que o altíssimo índice de privatização das empresas ligadas ao gerenciamento de informações na web  complica a ação dos militares, cuja cultura operacional é tradicionalmente centralizadora e vertical. Nos Estados Unidos, de 80% a 90% dos bancos de dados estão em mãos privadas, o que torna extremamente relevante o papel da Google, a megacorporação no setor de informações e a terceira maior empresa privada do mundo no ramo das comunicações.  
A estratégia da Google na Guerra Fria cibernética é fundamental para a balança do poder entre os Estados Unidos e a China, mas também transcendental para nós, que usamos gratuitamente os mecanismos de busca, correio eletrônico, YouTube e dezenas de outros aplicativos desenvolvidos pela empresa para captar nossas preferências e dados pessoais.


[1]Neologismo criado para expressar o ato de identificar códigos, senhas e arquivos protegidos em computadores ou redes de computadores. Os crackers são o oposto dos hackers, que desenvolvem novos softwares.

Revolução dos Cravos: primavera após uma noite de 48 anos


Milton Ribeiro no SUL21

Durou décadas a ditadura em Portugal. A rigor, foram 48 anos entre os anos de 1926 e 1974. Só Antônio de Oliveira Salazar governou por 36 anos, entre 1932 e 1968, e a Constituição de 1933, que implantou o Estado Novo nos moldes do fascismo italiano com seu Partido Único, permaneceu até 1974, por 41 anos.
Capa do jornal república de 25 de abril de 1974 (Clique para ampliar)
Acabou em 25 de abril de 1974 numa revolução quase sem tiros. Morreram apenas quatro pessoas pela ação da DGS (ex-PIDE). A adesão aos militares que protagonizaram o golpe na ditadura foi tão grande que as cinco mortes mais pareceram um desatino final. O nome de “Revolução dos Cravos” foi devido a um ato simbólico tomado por uma simples florista. Ela iniciou uma distribuição de cravos vermelhos a populares e estes os ofereceram aos soldados, que os colocaram nos canos das espingardas.
Tudo fora bem planejado. A ação começou em 24 de abril de forma muito musical. Um grupo militar instalou secretamente um posto no quartel da Pontinha, em Lisboa. Às 22h55 foi transmitida por uma estação de rádio a canção E depois do adeus, de Paulo de Carvalho. Este era o sinal para todos tomarem seus postos. Aos 20 minutos do dia 25, outra emissora apresentou Grândola, Via Morena, de José Alfonso. Ao contrário da primeira canção, a qual era bastante popular, Grândola estava proibida, pois, segundo o governo, fazia clara alusão ao comunismo.
Passados 38 anos, todos reclamam em Portugal. Tendo no centro do cenário a atual crise econômica, a esquerda considera que o espírito da revolução se perdeu, assim como várias das conquistas dos primeiros anos, enquanto a direita chora as estatizações do período pós-revolucionário, afirmando que esta postura prejudicou o crescimento da economia. O ex-presidente Mário Soares afirma  que tudo o que ocorreu nos últimos 38 anos pode ser discutido e reavaliado, mas que a comparação entre o passado e o que há hoje é comparar “um passado de miséria, de guerra e de ditadura” com um país onde há “respeito pela dignidade do trabalho, pelos sindicatos e pela democracia pluralista”.
Deus, Pátria e Família (Clique para ampliar)
 
A ditadura iniciou em 1926 com o decreto que nomeou interinamente o general Carmona para a presidência da República. Após a dissolução do parlamento, os militares ocuparam todas as principais posições do governo. A ditadura teve o condão de unir todos os partidos que antes disputavam entre si. Eles enviaram uma declaração conjunta às embaixadas dos EUA, Inglaterra e França, informando que não reconheciam o governo. Em resposta, a repressão policial foi acentuada e todos os que assinaram a declaração foram presos em Cabo Verde, sem julgamento.
Todas as revoltas foram sufocadas enquanto os militares se viam às voltas com uma crise econômica. Havia duas correntes: uma representada pelo ministro das finanças, o general Sinel de Cordes, que desejava recorrer a um empréstimo externo e outra, de um professor de finanças da Universidade de Coimbra, Antônio de Oliveira Salazar, que pensava não ser necessário o empréstimo externo para resolver a difícil situação financeira do país. O empréstimo não foi feito em razão de que as condições exigidas eram inaceitáveis – quase as mesmas que a “troika” exigiu e levou atualmente. O resultado final do episódio foi o pedido de demissão de Sinel de Cordes e o convite a Salazar para a pasta das finanças.
O ditador solitário

Salazar impôs austeridade e rigoroso controle de contas. Obteve o equilíbrio das contas de Portugal em 1929. Na imprensa, controlada pela censura, Salazar era chamado de “o salvador da pátria”. O prestígio ganho junto ao setor monárquico e católico, além da propaganda, consolidavam pouco a pouco a posição de Salazar, abrindo espeço para sua ascensão. Ele se tornou o esteio dos militares, que o consultavam para tudo, principalmente para as reformas ministeriais. Enquanto a oposição era dizimada, Salazar recusava o retorno ao parlamentarismo e à democracia da Primeira República, criando a União Nacional em 1930, preparando a instalação de um regime de partido único.
Em 1932, foi discutida uma nova Constituição que seria aprovada no ano seguinte. Nela, é criado o Estado Novo, uma ditadura que dizia defender “Deus, a Pátria e a Autoridade”, principalmente a terceira, que depois foi alterada para Família. A ditadura portuguesa foi muitíssimo pessoal e revelava claramente o caráter de seu chefe. Salazar era uma estranha espécie de misantropo que governava um país ao mesmo tempo que amava a solidão e posava de inacessível. Suas palavras são surpreendentes, mesmo para um ditador. “Há várias maneiras de governar e, a minha, exige isolamento… O isolamento muito me ajudou a desempenhar minha tarefa e permitiu-me, no passado como hoje, concentrar-me, ser senhor do meu tempo e dos meus sentimentos, evitar que fosse influenciado ou atingido”. Muito católico, Salazar nunca casou e vivia entre padres. O cardeal de Lisboa, D. Manuel Gonçalves, disse dele: “é um celibatário austero que não bebe, não fuma, não conhece mulheres”, mas, a fim de afastar qualquer inclinação homossexual, ressaltou: “mas ele aprecia a companhia das mulheres e a sua beleza sem, no entanto, deixar de levar uma vida de frade”.
Salazar e Franco: colaboração e frieza
 
Tal como fazia na vida privada, Salazar criou uma curiosa política e um bordão não menos. Praticava uma política de isolacionismo internacional sob o lema Orgulhosamente sós. Atuava de forma tortuosa. Apoiou Franco na Guerra Civil de 1936, mas manteve com este uma relação fria e desconfiada. Durante a Segunda Guerra Mundial, agarrou-se à neutralidade como se disto dependesse sua vida. Talvez tivesse razão. Próximo ideologicamente do fascismo italiano, Portugal não hostilizou o eixo Roma-Berlim-Tóquio, apesar de ter tornado ilegais os movimentos fascistas, prendendo seus líderes. Comprou armas, mesmo durante a Guerra, tanto na Alemanha quanto da Inglaterra, evitando o confronto e a adesão. Acendendo uma vela para cada um dos lados, Salazar aceitava dar vistos a judeus em trânsito vindos da Alemanha e da França. Também concedeu aos Aliados uma base nos Açores.
O ditador foi homenageado por Fernando Pessoa.
Antonio de Oliveira Salazar
Antonio de Oliveira Salazar.
Três nomes em sequencia regular…
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu…
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho…
Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.
Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
Após a Segunda Guerra Mundial, manteve a política do Orgulhosamente sós, mas nem tanto assim, pois Salazar desejava permanecer orgulhosamente só, porém, com suas colônias. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional e a ONU passaram a defender políticas de autodeterminação dos povos em regiões colonizadas. Salazar ignorou o fato, levando o país a sofrer consequências negativas tanto do ponto de vista econômico como culturais.
Charge de 1957, publicada em jornal clandestino

Internamente, a violência da democracia de fachada de Salazar não ficava nada a dever a suas congêneres latino-americanas. O Estado Novo tinha sua polícia política, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), a qual era antes chamada de PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e depois de DGS (Direção-Geral de Segurança). Em comum, a perseguição e morte aos opositores do regime. O regime autoritário, mas sem violência é uma fantasia que muitos católicos portugueses gostam de manter, pois a Igreja Católica sempre era citada por ele. Até hoje, alguns saudosos de Salazar misturam fascismo e catolicismo.
Em março de 1961, ocorreu uma chacina de colonos civis no norte de Angola. A resposta de Salazar foi uma Guerra Colonial chamada  Para Angola rapidamente e em força. Depois, novas guerras em Guiné e Moçambique, sempre com o propósito de permanecer orgulhosamente só, mas com as províncias ultramarinas sob sua bandeira. As Guerras Coloniais tiveram como consequências milhares de vítimas e forte impacto econômico sobre o país, tendo sido uma das causas da queda do regime.
Salazar foi afastado do governo em 27 de Setembro de 1968, após uma grave queda em casa, o que lhe causou uma trombose cerebral. Seu fim foi digno de opereta: naquele 1968, o então Presidente da República, Américo Tomás, chamou Marcello Caetano para substitui-lo. O curioso é que, até morrer, em 1970, Salazar continuou a receber “visitas oficiais” como se fosse ainda o presidente do país, nunca manifestando sequer a suspeita de que já o não era, no que não foi contrariado.
Negociações para a rendição da PIDE/DGS, no dia 26 de Abril de 1974. Fotografia de Joaquim Lobo.

O longo inferno foi finalizado pelo 25 de Abril, tal como o conhecem os portugueses. O Movimento das Forças Armadas (MFA) foi composto por oficiais intermediários da hierarquia militar, na sua maioria, eram capitães que tinham participado na Guerra Colonial e que foram apoiados por oficiais e estudantes universitários. Este movimento nasceu por volta de 1973, baseado inicialmente em reivindicações corporativistas das forças armadas envolvidas nas guerras coloniais, acabando por se estender a protestos contra a ditadura. Sem grande apoio e com a adesão em massa da população à Revolução dos Cravos, a resistência do regime foi praticamente inexistente, registrando-se apenas cinco mortos em Lisboa pelas balas da famigerada DGS.
Após o 25 de abril, foi criada a Junta de Salvação Nacional, responsável pela nomeação do presidente da República. Assim, em 15 de Maio de 1974, o general António de Spínola foi nomeado presidente.
Estabilizada a conjuntura política, prosseguiram os trabalhos da Assembleia Constituinte para a nova constituição democrática, que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976, o mesmo dia das primeiras eleições legislativas da nova República.
Tanto Mar, de Chico Buarque
Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Noam Chomsky escreve – e fala – sobre o Occupy


Outubro de 2011: em Nova York, manifestantes do Occupy protestam fantasiados de zumbis, diante da Bolsa

Entrevistado ao lançar novo livro, ele debate perspectivas do movimento, Primavera Árabe, crise da democracia, internet e como os EUA produziram seu próprio declínio

Entrevista a Joshua Holland, do Alternet | Tradução: Daniela Frabasile

No ano passado o movimento Occupy espalhou-se espontaneamente por inúmeras cidades dos Estados Unidos. Mudou radicalmente o discurso e fustigou a elite econômica com sua desafiante defesa das maiorias. Foi, para Noam Chomsky, “a primeira grande resposta pública a trinta anos de guerra de classes”. Em seu livro mais recente,
Occupy, Chonsky debate os principais temas, questões e reivindicações que estão levando cidadãos comuns a protestar. Como se chegou a tal ponto? De que modo o 1% de mais ricos influencia as vidas dos outros 99%? Como se pode separar Política de Dinheiro? Que seria uma eleição genuinamente democrática?
Na semana passada, Chomsky foi entrevistado na web-rádio do site Alternet. Eis uma transcrição, levemente editada por motivos de clareza, de sua fala. A gravação original (em inglês) pode ser ouvida aqui.  

Joshua Holland:Eu queria perguntar sobre algumas tendências que moldam nosso discurso político. Eu li muitos de seus livros, e um que eu achei importante foi O consenso fabricado, do final dos anos 1980. Desde então, houve grandes mudanças. A mídia dominante está mais consolidada mas temos, ao mesmo tempo, uma proliferação de outras formas de mídia. Você acha que o alcance do que é considerado um discurso aceitável foi ampliado ou restringido?
Noam Chomsky: Na verdade, Ed Herman e eu lançamos uma segunda edição desse livro uns dez anos atrás, com uma nova (e longa) introdução. Na época, não víamos muitas mudanças, mas se fôssemos fazer de novo, certamente abordaríamos o que você mencionou. Lembro que estávamos falando sobre a mídia dominante. Em relação a isso, acho que praticamente a mesma análise se sustenta, apesar de meu sentimento ser de que, desde 1960, houve abertura no mainstream – como efeito do ativismo da década de 60, que mudou as percepções, atitudes, e civilizou o país de muitas maneiras. Assuntos que são discutidos abertamente hoje eram invisíveis, e, se visíveis, não eram mencionados há cinquenta anos.
Além disso, muitos jornalistas são, eles mesmo, gente cuja formação se deu no ativismo dos anos 60 ou nos seus desdobramentos. Essas mudanças estão se dando por um longo tempo. Com relação às mídias alternativas, elas certamente proporcionam uma grande variedade de opções que não existiam antes – o que inclui o acesso à mídia estrangeira. Por outro lado, a internet é, de certa forma, como entrar na Biblioteca do Congresso. Tudo está lá, mas você tem que saber o que esta procurando. Do contrário, você pode não ter acesso nenhum à biblioteca, porque daria no mesmo. Por exemplo, não é suficiente entrar na biblioteca de Biologia de Harvard para tornar-se biólogo. Você tem que ter as bases para o entendimento, uma concepção do que é importante e do que não é; do que faz sentido ou não faz. Não uma base rígida que nunca se modifica, mas você precisa ao menos ter algum tipo de base.
Infelizmente, isso é bem raro, quando faltam movimentos ativistas que atraiam uma parte substancial da população para interação, intercâmbio – o tipo de coisa que ocorria na comunidade do Occupy por exemplo. Na ausência disso, a maioria das pessoas fica meio à deriva, na internet. Sim, é possível encontrar coisas de valor, mas você tem que saber procurar por elas e ter as bases de análise e percepção que permitam separá-las do lixo.

Separar o joio do trigo..
Chomsky: Sim – o que exige organização e ativismo. É o tipo de coisa que tem que ser feita com outras pessoas. Você tem que ser capaz de testar ideias e obter reações. Você tem que apurar suas percepções. Isso realmente não ocorre sem uma organização substantiva. Existe um intercâmbio na internet, mas ele tende a ser superficial.
Vamos voltar ao seu livro. Chama-se Occupy, é uma leitura boa e rápida. Você faz um ótimo trabalho explicando a guerra de classes promovida pela elite econômica nos últimos trina ou quarenta anos. Mas a pobreza é relativa: americanos vivendo na linha de pobreza ainda possuem uma riqueza maior que 80 ou 90 % da população mundial. Poucas pessoas passam fome nesse país, e a atual tendência [para a desigualdade] não é algo novo. Qual foi o ponto de virada? A gravidade da recessão? O que mais ajudou a abrir os olhos das pessoas?
Chomsky: Você está certo ao dizer que estamos melhor que a maior parte do mundo. Antes de falar com você, eu conversava com uma mulher da Índia, que vive e trabalha há muitos anos em vilas localizadas numa das áreas mais pobres do país. Ela descria suas atividades: seus sucessos e fracassos. É um mundo radicalmente diferente. As pessoas aqui não vivem em condições comparáveis às da idade da pedra. Eles se comparam com o que está disponível para uma vida decente na sociedade em que vivem. Esse é o país mais rico e poderoso de toda a história do mundo. Isso tem vantagens extraordinárias. Comparando com o que está disponível aqui, e, dadas as circunstâncias, com o que está disponível para a maioria da população – o imaginário dos 99% do movimento Occupy – existe um abismo enorme.
Por exemplo, não temos o tipo de sistema de saúde que outras sociedades comparáveis têm. Não temos infra-estrutura equivalente. Nos últimos trinta anos – mesmo sem contar com a última recessão – houve uma relativa estagnação da grande maioria da população. O que realmente aconteceu está muito bem contado em um pequeno livro que foi publicado depois do meu. E uma recente publicação do Economic Policy Institute, que tem sido a fonte principal de dados confiáveis nos últimos 30 ou 35 anos. Chama-se Failure by Design [“Fracasso Projetado”]. É uma leitura fácil e que vale a pena. O título é bastante preciso. Estamos [nos Estados Unidos] em meio a um fracasso, na medida que grande parte da população não viveu essencialmente progresso nenhum, ainda que uma riqueza substancial tenha sido produzida. A própria economia é muito menos produtiva do que deveria ser. A produção do tipo de bens de que as pessoas precisam é menos ainda. É claro que uma pequena parte da população – os 0,1% – obteve sucesso espetacular.
É um fracasso baseado na diferença de classes, e foi projetado. Esse é o fato crucial. Existiram e ainda existem outras opções disponíveis. As coisas não precisam acontecer assim. Por isso, acumulam-se tantos temores, raivas, frustrações. Tudo isso está visível nas pesquisas. Há ódio às instituições e desconfiança por todo o país, e isso tem aumentado há um bom tempo. O movimento Occupy conseguiu capturar o sentimento e cristalizá-lo. É assim que os movimentos populares crescem.
Tomemos como exemplo o movimento de direitos civis. Ele existiu por décadas, mas poucas coisas produziram desenvolvimento importantes. Por exemplo, a atitude Rosa Parks, ou estudantes negros sentando nas lanchonetes em Greensboro, na Carolina do Norte. As coisas acontecem de repente e, do nada, surge um movimento popular. O mesmo aconteceu no movimento contra a guerra, os movimentos feministas, os ambientalistas, ou o movimento por justiça global.
O Occupy eclodiu no momento em que era mais necessário, e acho sua estratégia brilhante. Se tivessem me perguntado, eu não a teria recomendado. Nunca pensei que fosse funcionar. Por sorte, eu estava errado. Funcionou muito bem. Dois grandes processos se deram, em minha opinião, e se puderem ser mantidos e ampliados, será extremamente importante. Um foi simplesmente mudar o discurso, colocando na agenda temas que estavam fervendo nos bastidores, mas nunca eram o foco principal – como a desigualdade, a corrupção financeira, a fragmentação do sistema democrático, o colapso da economia produtiva. Estes assuntos tornaram-se comuns. Isso foi muito importante.
Outro fenômeno que surgiu, e é difícil de medir, foi a criação de comunidades. As comunidades do Occupy foram extremamente valiosas. Formaram-se espontaneamente, com base no auxílio mútuo, intercâmbio público e outras coisas que fazem muita falta, em uma sociedade pulverizada como a nossa, onde as pessoas estão sozinhas. A unidade social por que o mundo dos negócios luta é apenas uma díade, um par. Você e sua televisão e seu computador. O Occupy quebrou isso de forma extremamente significante. A possibilidade de cooperação, solidariedade, apoio mútuo, discussão pública e participação democrática é um modelo que pode inspirar as pessoas. Muitas pessoas participaram disso, pelo menos de forma periférica.
Se estas duas conquistas puderem ser mantidas e expandidos, poderá haver um impacto de longo prazo. Não será fácil, há existem desafios imensos. As táticas terão que ser ajustadas, como sempre, mas o que aconteceu foi um ponto de virada. Se você pensar no que aconteceu em apenas alguns meses, é surpreendente.

Vamos mudar de assunto um pouco. Você falou e escreveu muito sobre a chamada Primavera Árabe. Parece que esse “despertar” tem sido desigual, assim como a reação do governo dos Estados Unidos a ele, nos vários países. O governo hesitou, mas de certa forma apoiou a revolução no Egito, usou a força na Líbia, e ao mesmo tempo fecha os olhos enquanto a Arábia Saudita e outras forças defenderam o regime no Bahrain – um movimento que estranhamente coloca os governos dos Estados Unidos e do Irã no mesmo campo. Como podemos entender essas contradições… ou desenvolvimentos desiguais?
Chomsky: Em primeiro lugar, acho que a política dos Estados Unidos tem sido bastante consistente, o que é verdade também em relação à Inglaterra e à França. A França é muito influente na parte ocidental da África e no norte do continente: a Tunísia era como um protetorado francês. As potências imperiais tradicionais têm uma posição muito consistente: elas opõem-se às tendências democratizantes em qualquer, lugar nessa região.
Você afirma que os Estados Unidos apoiaram, hesitantes, a derrubada da ditadura no Egito, mas isso é parcialmente verdade. O que vimos foi um padrão muito tradicional de atitude. O ditador preferido torna-se cada vez mais difícil de apoiar. No fim, o exército volta-se contra ele. Nesses casos, e existem dezenas deles, existe um tipo de conduta que é seguido rotineiramente. Apoia-se o ditador e o regime tanto quanto possível. Quando isso se torna impossível – por exemplo, se o exército volta-se contra o ditador, como no Egito – então, os EUA mandam-no embora, declaram seu amor à democracia e tentam restabelecer tanto do regime antigo quanto possível. Foi basicamente o que aconteceu.
O maior sucesso da Primavera Árabe é, até agora, a Tunísia. Os franceses apoiaram a ditadura, mesmo quando o levante popular era maciço. Continuaram a apoiá-la, até que finalmente se afastaram. Tem havido uma real participação popular na Tunísia, que muda muito as coisas. Há vários problemas, mas houve progressos consideráveis. No Egito, que é o país mais importante e onde coisas muito animadoras aconteceram, houve vários retrocessos. Muito do antigo regime está de volta. Os grupos islâmicos que se organizaram sob a ditadura, em favelas urbanas e nas áreas rurais, agora têm uma grande estrutura organizacional, que lhes permite – particularmente à Irmandade Muçulmana – manter influência dominante em qualquer espaço político formal existente hoje.
Os Estados Unidos podem viver com eles. A liderança da Irmandade Muçulmana é neoliberal. Ela basicamente aceita a estrutura das políticas globais estadunidenses. Os Estados Unidos não têm objeção ao domínio islâmico. A Arábia Saudita, que é um grande aliado, é o estado mais extremamente fundamentalista islâmico do mundo, e um dos mais opressivos. Os Estados Unidos não têm problemas com isso. Pode ser islâmico ou qualquer outra coisa, desde que aceite as estruturas do poder global dos Estados Unidos.
Não tenho tempo de ir de caso em caso, mas acho que, se você observar, irá concluir que todos os casos são essencialmente iguais neste padrão – os Estados Unidos e seus aliados temem um progresso democrático real, e tentam bloqueá-lo. Existe uma razão muito simples para tanto. Examine as pesquisas. Existem amplas sondagens de opinião pública, feitas pelos Estados Unidos e por organizações árabes confiáveis. Todas indicam que naquela região as sociedades veem, como maior ameaça, os Estados Unidos e Israel.
Eles não gostam do Irã, bastante impopular. Isso vem da tensão entre persas e árabes. As tensões entre sunitas e xiitas também vêm de longa data. O Irã é impopular, mas poucos o veem como uma ameaça. Na última pesquisa, há algumas semanas, eram 5%. A oposição à política dos Estados Unidos é tão forte que a maioria – e em alguns países, a grande maioria – pensa que a região estaria melhor se o Irã tivesse armas nucleares. Eles não gostariam que houvesse armas nucleares lá, mas querem compensar o poder dos Estados Unidos e de Israel. Uma recente pesquisa do Gallup mostra que mais de 80% dos egípcios querem rejeitar a ajuda dos Estados Unidos, porque se opõem ao país e têm medo de ameaças.
Essas não são posturas que os Estados Unidos e seus aliados desejam, obviamente. Se você tem uma democracia que funciona, a opinião pública influencia a política. Por isso, Washington se opõe à democracia. Você não lê isso na mídia e nos jornais. Fala-se sobre nosso amor à democracia e sobre nossa suposta inconsistência: por que aqui sim, e lá não? Na verdade, há muito pouca inconsistência. Aliás, isso é confirmado pelos estudiosos mais sérios, que reconhecem, meio que lastimosamente, o apoio dos Estados Unidos à democracia, apenas como estratégia e por objetivos econômicos. É verdade na América Latina, é verdade no Oriente Médio, é verdade em qualquer lugar. É verdade aqui em casa, também. É completamente inteligível, não deveríamos alimentar ilusões sobre isso. Pode não ser o que as pessoas nos Estados Unidos querem, mas aqui, e em outros países, há, entre a opinião pública e as políticas um grande hiato, um sinal de não funcionamento da democracia. É, aliás, uma das razões para o enorme um antagonismo da população para com o Congresso. A aprovação do Congresso está na casa em um dígito. Acho que nunca foi menor.

Numa pesquisa recente, 11%.

Chomsky: É praticamente invisível. O mesmo é verdade em relação a instituições que atuam no exterior. Grandes corporações, bancos, ciência, várias coisas.

Apenas o exército ainda aparece bem, em termos de confiança das pessoas nas instituições. Elas ainda confiam no exército.

Chomsky: Você tem razão. Nada disso é saudável – na verdade, tudo é muito perigoso. Reflete basicamente o desgaste do funcionamento da democracia, que vem de muito tempo. O fato de as eleições serem essencialmente compradas tornou-se tão evidente que é difícil de esquecer.

Falando sobre tendências internacionais, o que você acha da crescente visão de que os Estados Unidos são um império em declínio? De um lado, certamente parece que nosso chamado soft-power está diminuindo, mas é preciso contrastar isso com nosso crescente domínio militar na era pós-Guerra Fria e especialmente em seguida ao 11 de Setembro. Estamos realmente em declínio?

Chomsky: Sim, estamos. Os Estados Unidos estão em declínio desde 1945. No final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos estavam em uma posição de poder fenomenal. Tinham metade da riqueza do mundo. Tinham segurança total. Controlavam o hemisfério ocidental. Controlavam os dois oceanos e as margens opostas dos dois oceanos. Tinham objetivos muito ambiciosos de controlar a maior parte do mundo e assegurar que não houvesse objeções a esse domínio. Isso era muito explícito e amplamente implantado. O país entrou em declínio muito rápido.
Em 1949, houve um grande evento, que é chamado aqui de a “perda” da China. Significa que o país tornou-se independente. Isso é uma enorme fonte de controvérsias e conflitos nos Estados Unidos desde então – as pessoas perguntam quem é responsável pela “perda” da China… Logo depois disso, começaram a se preocupar com a “perda” da Indochina, que espalhou a preocupação de que haveria a “perda” do sudeste asiático. O conceito de “perda” é interessante. É uma pretensão tácita de que são basicamente… nossos.
A situação se desfez ao longo dos anos. Em 1970, o percentual da riqueza mundial nos Estados Unidos era aproximadamente 25% – o que ainda é colossal, mas não é 50%. O mundo já estava se tornando mais diverso. Na última década, a América do Sul adquiriu substancial independência. Vimos isso recentemente na Conferência de Cartagena, na Colômbia. Os EUA mantiveram-se em posição isolada em todos os grandes temas: drogas, Cuba e outros. É um sinal de significativa perda de poder e influência. Agora, ocorre no Oriente Médio. É outra razão pela qual os Estados Unidos e seus aliados estão tão preocupados com a ameaça da democracia e da independência. .
Você tem razão ao dizer que o poder militar não declinou. Na verdade, pode ter se ampliado, em comparação com o resto do mundo. Os Estados Unidos são responsáveis por quase metade dos gastos militares do mundo. O único país com centenas de bases e com a habilidade de se projetar em qualquer lugar. Novas tecnologias de destruição e assassinato – drones, por exemplo. Estão muito à frente do resto do mundo.
Você também citou o chamado soft-power. Isso é importante. A capacidade de influência continuou a cair, como tem acontecido desde 1945. Uma forma de ver isso são os vetos na ONU. Até meados da década de 1960, o mundo estava tão sob controle que os Estados Unidos não vetaram nenhuma resolução no Conselho de Segurança. Desde então os Estados Unidos são o líder em vetar resoluções. A Inglaterra, um estado-cliente dos EUA, fica em segundo. Nenhum outro país chega perto. Esse é um reflexo do declínio de capacidade e poder, o que significa a habilidade de influenciar e controlar.
Parte desse declínio é auto-infligida. O que o Economic Policy Institute chama de “fracasso projetado” enfraqueceu significantemente os Estados Unidos, e irá continuar – a não ser que aconteçam grandes mudanças. Mudanças que beneficiariam a população aqui e no mundo.
Há uma espécie de conclusão comum deste raciocínio que supõe uma futura hegemonia chinesa. Deveríamos ser cautelosos quanto a isso. O crescimento chinês tem sido espetacular, mas a China ainda é um país muito pobre – incomparavelmente mais pobre que os Estados Unidos. A China cresceu como um enorme centro industrial, mas principalmente para montagem. É principalmente uma plataforma de montagem para países de indústria sofisticada e multinacionais ocidentais como a Apple ou outras. Isso irá mudar com o tempo, mas é um percurso longo. A China enfrenta problemas reais: ecológicos, demográficos e muitos outros. É um desenvolvimento significativo, mas acredito que deveríamos olhá-lo com algum ceticismo.
Sim, esses processos estão sem dúvida ocorrendo. Eles são parcialmente projetados. Um setor da sociedade está incrivelmente bem – em especial, o ligado ao capital financeiro. Para o público em geral, a história é diferente. É por isso que você vê revoltas em toda a parte.

''O jornalismo pode ser transformador, pode embalar a utopia''

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 "Levar o leitor espectador a pensar. Isso é praticamente uma revolução”, assegura a jornalista Elaine Tavares

IHU Online

 “Temos um mundo a construir”. Portanto, “ousem ouvir as vozes hereges, ousem criar grupos de estudo, ousem navegar nos livros velhos escondidos nas prateleiras”. É com esse conselho, que a jornalista Elaine Tavares incentiva os estudantes de Comunicação e colegas de profissão a compreenderem “que há mais coisas no jornalismo do que aquilo que é repetido nas salas de aula”.
Com uma longa experiência em diversos veículos de comunicação, Elaine enfatiza que os jornalistas devem caminhar em busca da boa utopia e isso significa ultrapassar as barreiras de manipulação à direita e à esquerda, e praticar jornalismo “como uma forma de conhecimento”. Autora do livro recém lançado, Em busca da Utopia – os caminhos da reportagem no Brasil, dos anos 50 aos anos 90 (Florianópolis: Ed. Instituto de Estudos Latinoamericano-Americanos, 2012), ela ressalta que a prática jornalística pode levar o “leitor/espectador a pensar, a se desalojar do mundo tal qual ele é – injusto, opressor, excludente”. Nesse sentido, assegura: “O jornalismo pode ser transformador, pode embalar a utopia”.
Para que os jornalistas não deixem morrer as suas utopias e as levem adiante na prática do dia a dia, os cursos de jornalismo “precisam ensinar a pensar”, pois o “o jornalista que pensa tem mais chance de caminhar na direção da utopia”, assinala à IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Elaine reflete sobre a prática jornalística e o desafio das universidades de formarem profissionais críticos. “Um aluno do jornalismo deveria ter uma sólida formação humanística, política e econômica, deveria entender os grandes problemas estruturais de seu país e de seu continente”, diz. Para isso, assegura, “primeiro há que mudar a universidade, subverter esse ensino que domestica. Há que se produzir um pensamento autóctone sobre o jornalismo, conhecer nossos pensadores do passado, avançar com eles, superá-los. Há que conhecer a história do nosso povo, há que estudar filosofia, reaprender a pensar. Depois disso, há que voltar a narrar a vida com um texto que descreve, que narra, que contextualiza”.
Elaine Tavares é jornalista do Instituto de Estudos Latino-Americanos – IELA, da Universidade Federal de Santa Catarina e escreve no blog Palavras Insurgentes, no endereço eletrônico http://eteia.blogspot.com.br/.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que caracteriza o jornalismo utópico?

Elaine Tavares – Na verdade, não há um jornalismo utópico. O que busquei foi ver se, como e onde aparecia a utopia no jornalismo (que era e é o meu fazer cotidiano) já que esse desejo de um lá-na-frente melhor parece ser algo que faz parte da consciência humana. E por que eu decidi fazer essa busca? Porque naqueles dias do final dos anos 1990 havia uma espécie de histeria na mídia e nas esferas intelectuais sobre o fim de todas as utopias. Falava-se do fim da história, fim do socialismo, fim das grandes narrativas. Eu não acreditava nisso, porque via a utopia aparecer explícita no Equador, onde os indígenas ocupavam as igrejas e exigiam seus direitos, e principalmente no México, onde os novos zapatistas faziam um enfrentamento armado ao Estado, usando a internet como um elemento de potencialização dessa resistência. Então, se a realidade me dizia que a utopia vivia, não dava para crer no que apregoavam alguns filósofos, notadamente europeus. Então fui buscar na narrativa jornalística, o sinal dessa utopia. E encontrei. A vida real, quando narrada, escancara a utopia humana. E também percebi que as utopias podiam estar claudicando lá na Europa, mas não aqui na América Latina. Ao contrário, aqui vivíamos um alvorecer de novas e belas utopias.

Como a utopia aparece nas reportagens brasileiras produzidas entre os anos de 1950 e 1990, nas revistas O Cruzeiro, Realidade, Veja e Época?

Há um teórico brasileiro chamado Teixeira Coelho que fez um trabalho muito interessante sobre a utopia. E ele vai além da ideia de que a utopia é só um lá-na-frente esperado. Ele divide a utopia em duas vias: a eutopia, que seria a construção de um lá-na-frente bom, e a distopia, que seria um lá-na-frente ruim (ele coloca nesse patamar o nazismo, por exemplo, que era o sonho de um homem, e acabou sendo o de parte de uma nação). Então, com base na ideia de Ernest Bloch – que fala da utopia como a negação de um real que não é bom e a busca de um lá-na-frente possível – junto da proposta de Teixeira Coelho, fui analisar as revistas. O que descobri foi que a utopia aparece em todas essas revistas, mesmo na Veja e na Época – que fazem um péssimo jornalismo. E como? Na Cruzeiro, a utopia assoma na forma de narrar. É quando a reportagem começa a se constituir como texto descritivo, interpretativo, para além da opinião. Esse tipo de narrativa consegue também trazer para o texto a utopia da época, anos 1960, tempos de grandes mudanças culturais e políticas, nova temperatura no mundo. Na revista Realidade a utopia se mostra plena, com a reportagem – texto e foto – sendo capaz de expressar o espírito da época, que era de revoluções. Mesmo sendo feita dentro de um regime militar, como o vivido no Brasil, a Realidade trazia temas instigantes e reportagens descritivas que pareciam roteiros cinematográficos, tamanha a sua capacidade de transportar o leitor para dentro da história. Ali, a forma de narrar impressionista chegava ao seu auge. Expunha as chagas abertas da vida brasileira em histórias reais e o jornalismo adquiria o sentido da arte. A revista Veja atravessa os anos 1980 e 1990 como um fenômeno editorial e, por incrível que pareça, também apresenta a marca da utopia, nesse caso como distopia (lugar ruim). Busca, na nova narrativa hegemonizada e impessoal, sem marca de autor, consolidar uma sociedade submetida à indústria cultural. E aí, o jornalismo deixa de ser uma narrativa impressionista, descritiva e interpretativa e passa a ser uma espécie de “gosma“, sem forma e sem sabor. Ainda assim, mesmo nela, de vez em quando aparece um texto de autor, no qual o jornalista ousa narrar a vida mesma, e aí aparece de novo a utopia como eutopia. É muito bonito de ver. Por fim, a Época, que aparece para “arrebentar“ nos anos 1990, com seus drops informativos e infográficos, chega ao ápice da distopia, com o jornalismo perdendo todas as suas características como narrativa da vida. Os textos são horríveis, retalhos de vários olhos, sem identidade. A maioria das reportagens são autopropaganda da Globo, ou seja, a revista servindo como espaço para vender ainda mais a programação da TV. E ali, no auge da gosma, um ou outro jornalista-autor também aparece e faz aparecer a utopia como um raio de luz. 

Sob quais influências se construiu o pensamento teórico acerca do jornalismo e da reportagem no Brasil?

Essa foi outra curiosidade minha. Durante meu tempo na faculdade era comum a gente estudar autores estrangeiros, falar do jornalismo que se fazia nos Estados Unidos e muito pouco se falava dos autores brasileiros. Então fui procurar quem tinha sido o “guru“ de cada época. Foi um trabalho muito legal porque acabei encontrando autores incríveis, com pensamentos muito originais sobre o jornalismo, como, por exemplo, Celso Kelly, que chegou a escrever uma teoria estética para o jornalismo, e Antônio Olinto, que é uma preciosidade. Ele diz: o jornalista tem que ser como o artista, que mantem intacta em si a capacidade de sentir e transmitir sentimentos estranhamente verdadeiros. Não é bárbaro? Agora, é claro, o jornalismo brasileiro pós-1950 se constituiu hegemonicamente como cópia do jornalismo estadunidense. Os autores mais originais ficaram à margem e não é sem razão que são praticamente desconhecidos nos cursos de jornalismo hoje. Por exemplo, o chamado “novo jornalismo“, incensado como um jeito de narrar nascido nos EUA, já era uma prática aqui no Brasil bem antes de surgir por lá. Pode-se ver esses textos intimistas e impressionistas na revista O Cruzeiro. São as coisas do nosso colonialismo mental. Infelizmente o jornalismo que se pratica no Brasil – na maioria dos veículos – segue sendo uma cópia mal aparada do jornalismo estadunidense. Uma pena. Temos uma linda história e bons teóricos, como é o caso do Adelmo Genro, que, a meu ver, é o que há de mais original na discussão do fazer jornalístico. Um autor para ser estudado à exaustão.

No caso específico da revista Veja, que mudanças editoriais e utópicas percebe ao longo do tempo?

A Veja é um caso de autofagia (de uma empresa) em nome de um modelo de mundo. Explico. Ela nasce nos anos 1970 dentro da mesma editora que fazia a Realidade, que era uma beleza de revista, com reportagens incríveis. E ela vem para implantar no Brasil um estilo de jornalismo que assomava nos Estados Unidos. Essa coisa insossa de informação sem contexto, e que não é uma ação sem sentido. Ela é parte de um modo de ser e estar no mundo. Escrever como se estivesse informando, mas sem na verdade informar. A Veja entrou no mercado e matou a Realidade, que era o jornalismo de profundidade, que levava ao pensamento, ao questionamento. A mesma empresa mata uma revista boa para que a revista ruim pudesse começar a atuar como a usina ideológica de um modelo que se queria para o Brasil. Foi um projeto utópico (distópico) da classe dominante. Trazer a “modernidade“ e emburrecer as pessoas. Encurtam os textos, tiram o contexto, passam a doutrinar. Já não era mais jornalismo. Basta ver o que é a Veja hoje: uma máquina de propaganda da distopia da direita brasileira. Jornalismo ali é coisa rara. Quando aparece é obra solitária de algum jornalista.

Partindo do pressuposto de que a utopia é parte da consciência do ser humano, como o jornalista lida com sua utopia pessoal em veículos que têm visões de mundo divergentes, especialmente no caso dos oligopólios que dominam a informação?
Penso que o jornalista tem algumas opções na vida. Uma delas é a de ser fiel às suas utopias, aos seus sonhos, e aí, se ele está trabalhando numa empresa grande, que não tem compromisso nenhum com o jornalismo ou com a mudança do mundo, o seu compromisso é abrir brechas na parede. Muitas vezes os jornalistas são obrigados, por força da necessidade, de estar nesses lugares. Mas isso não significa que ele tenha de abortar suas utopias, sua vontade de narrar o mundo. Ele ou ela vai ter de pelear, lutar pelas suas matérias. Eu creio firmemente que um texto bom, bem elaborado, tem lugar mesmo nas “gosmas“. Pude comprovar isso na pesquisa. Belos textos aparecem na Veja e na Época. Porque certamente ali estavam jornalistas que transcenderam à mediocridade, à autocensura, e produziram belezas. E assim é no cotidiano dos grandes jornais ou revistas. Faz-se muita porcaria, mas vez ou outra a gente pode subverter, “oferecer a mais fina iguaria“, como dizia o Marcos Faerman. Tem uma professora da FURB, Universidade de Blumenau, Rosiméri Laurindo, que escreveu um livro muito interessante (com base em Adelmo Genro), no qual ela mostra bem como um jornalista pode virar um jornalista-marca, sem identidade, cativo dos desejos patronais, e como pode ser um jornalista-autor, capaz de voos solos, de textos eternos e de expressar a utopia da raça. 
Agora, é claro que também existem aqueles jornalistas que têm como utopia a construção do seu próprio mundo e aí viram serviçais do sistema, dos patrões, de um modo de vida que exclui a maioria. Com esses há pouco a fazer; temos de combater. Mas a maioria sonha com um mundo melhor e pode usar esse desejo para narrar a vida em movimento, narrar descrevendo, que é a melhor forma de transformar o mundo. Como dizia Bloch, é na visão do que não pode ser verdade que a gente caminha para o lá-na-frente onde todos possam bem-viver. Ou, nas palavras do Antônio Olinto: é na descrição que o jornalista formula a mais poderosa das opiniões.

O jornalismo tem de ser utópico? Qual a importância da utopia para o jornalismo?

Quem tem de ser utópico é o jornalista. Por exemplo, não dá para ver o despejo das famílias de Pinheirinho e não pensar que algo está muito errado. Na narrativa dessa violência deixar aberto para o leitor ou espectador a possibilidade de ele dizer: “isso não pode ser“. Essa é a utopia da qual o jornalismo é capaz. Levar o leitor espectador a pensar. Isso é praticamente uma revolução.

Historicamente, o jornalista foi abandonando a sua utopia por conta da empregabilidade, ou a utopia ainda faz parte da prática jornalística?

Faz, eu trabalho dioturnamente com jornalistas que utopicamente narram a vida. Estão aí nos sindicatos, nos movimentos sociais e até nas grandes empresas, nas pequenas cidades, na internet. São aqueles dos quais falei acima. Não se rendem, não se autocensuram, fazem as matérias, narram a vida em movimento. Se alguém os censura, o ônus não é deles. Eles fazem o que tem de fazer, descrevem a realidade, cumprem a sua utopia. A empregabilidade não pode servir de escudo para a gente se anular. Eu sempre dou meu próprio exemplo. Trabalhei em todas as áreas do jornalismo, TV, rádio, jornal, grandes empresas, sindicatos, instituições públicas e nunca deixei de ser quem sou ou de escrever, desvelando o que fica encoberto. Nem por isso morri de fome. A gente é demitido, passa aperto, mas a gente segue em frente. Temos outro projeto de vida.

Que utopias caracterizam as reportagens e, especificamente, o jornalismo do século XXI praticado no Brasil?

O jornalismo praticado hoje é muito ruim, se é que ainda é jornalismo. Chomsky diz que é mera propaganda. E isso vai da domesticação que uma boa parte dos cursos de jornalismo ajuda a fazer. Para se ter uma ideia, aqui em Santa Catarina o curso de Jornalismo tem uma “Cátedra RBS“, acredita? Ou seja, em vez de termos uma Cátedra América Latina, ou Cátedra Marcos Faerman, enfim, fatos e pessoas que acrescentam na formação do jornalista, o que existe é uma formação direcionada para o mercado que mais explora, que mais desinforma. Uma tristeza.
De qualquer sorte, temos um mundo a construir. A utopia do socialismo – por mais que digam que se acabou – segue viva, tremendamente viva. Na América Latina assoma hoje a luta dos povos originários por um modelo diferente de desenvolvimento, que eles chamam de bem-viver (sumac kausay). É uma inversão total da lógica, a negação do modelo capitalista que tanta miséria, dor e opressão traz ao mundo. Essa é uma boa utopia na direção da qual muitos de nós caminhamos. Socialismo, sumac kausay, terra sem males são eutopias (utopia que leva a um lugar bom) que merecem ser consideradas e conhecidas. Com isso em mente, podemos praticar o jornalismo como uma forma de conhecimento – tal qual ensinou Adelmo Genro. Não como manipulação à direita ou à esquerda, mas como uma singularidade que caminha para o universal, que leva o leitor/espectador a pensar, a se desalojar do mundo tal qual ele é – injusto, opressor, excludente. O jornalismo pode ser transformador, pode embalar a utopia. Mas, para isso, nos cursos de jornalismo, precisamos ensinar a pensar. O jornalista que pensa tem mais chance de caminhar na direção da utopia. 

O que dificulta hoje a produção de um jornalismo crítico?

Justamente a má formação. Hoje aposta-se muito mais na técnica. Prefere-se usar um curso de jornalismo para ensinar a gurizada a fazer web páginas, a usar o Premiere, o Ilustrator e tantos outros programas. Isso é muito bom, mas se não houver a prática do pensamento crítico, não vai servir de nada. Que adianta saber fazer uma página e não saber o quê escrever nela? O Marcos Faerman, que foi um grande repórter, dizia que esse papo de fazer texto curto é bobagem. Leitor só não lê texto ruim. Se for bom, se tiver contexto, impressão, descrição, se contar uma história, o texto carrega o leitor por páginas e páginas. Essa coisa de dizer que as pessoas não têm tempo para ler é mantra de quem ou não tem capacidade de escrever textos belos, ou está mancomunado com o sistema que quer fazer do público uma massa informe.
Eu ando por aí falando com os estudantes de jornalismo e vejo os olhinhos deles brilhando quando a gente fala em textos descritivos, impressionistas, cheios de histórias. É o que eles querem fazer. Para isso é preciso antes aprender a pensar, a perguntar, a investigar. É para tal finalidade que deveria servir a universidade. Para apresentar aos alunos os pensadores da nossa terra, os pensadores latino-americanos, tanta gente fantástica que produziu e produz um pensamento original, alavancado na experiência histórica e geográfica. E é uma gente desconhecida.

No livro você resgata teóricos como Danton Jobim, Alceu Amoroso Lima, Antônio Olinto e Celso Kelly, que não são muito utilizados nas universidades. Qual a contribuição deles para refletirmos sobre a prática jornalística?

Fundamental. Navegar pelas páginas desses autores nos ajuda a entender a história de uma época, nos leva a perceber os interesses envolvidos, os sonhos, as utopias de cada um e do tempo que eles representam. Jobim, por exemplo, é um dos primeiros a pensar uma filosofia do jornalismo. Ele é um liberal, apaixonado pelo modo de fazer jornalismo dos estadunidenses, mas se lido no contexto histórico, adquire uma beleza incrível. É fabulosa a defesa que ele faz da informação, contra o jornalismo opinativo que existia nos anos 1950. Claro que ele defende o modo capitalista de produção, a informação como produto, mas ele pensa um momento de mudança de temperatura do mundo. Nós precisamos conhecer isso, ver como o pensamento vai se formando e hegemonizando todo um fazer. Celso Kelly também tem suas complicações políticas, mas a teoria estética do jornalismo é uma beleza. A gente lê e a cabeça fica cheia de ideias, de pensamentos pulando, querendo sair. É instingante e perturbador. Alceu Amoroso Lima discute o uso das técnicas literárias no jornalismo, o que o “novo jornalismo“ vai fazer nos anos 1960 e 1970, e Antônio Olinto liga o jornalismo com a arte e tem um pensamento tão fecundo e inspirador que nos põe em ebulição. E não são apenas esses. Há outros, como Adelmo Genro Filho, que apresenta uma teoria do jornalismo, olha só. Isso é fabuloso. É um pensamento tão rico que chega a doer. Essa gente não é estudada.  

Atualmente, os cursos de jornalismo das universidades brasileiras têm um foco amplo na produção prática. A falta de um debate teórico acerca da conjuntura política, econômica, ambiental e de uma reflexão atenta da história do nosso país dificultam, de certa maneira, a proliferação do jornalismo utópico? Nesse sentido, que avaliação faz da formação jornalística propiciada pelas universidades?

Sim, dificultam a formação de alunos críticos, impedem que seus horizontem se abram, que conheçam em profundidade o seu espaço geográfico. Porque é diferente ser jornalista no Brasil, na América Latina. Há outros problemas, outras questões a serem pensadas, outros temas a serem abordados. As escolas seguem prisioneiras dos teóricos europeus ou estadunidenses. Gente boa, é certo, mas preocupada com outras coisas.
Penso que um aluno do jornalismo deveria ter uma sólida formação humanística, política e econômica; deveria entender os grandes problemas estruturais de seu país e de seu continente. Olha, eu tive a sorte de ter um professor – chamado Sérgio Weigert – que nos dava aula de problemas brasileiros. Ele nos colocava tontos com tanta informação acerca do nosso país. E tanto que o nosso trabalho final foi construir um projeto anti-hegemônico para o Brasil. Olha isso! Esse cara é um marco na minha vida porque ele nos ensinou que sem um mergulho profundo na filosofia, no pensamento germinal dos teóricos clássicos, a gente não vai a lugar nenhum. Com ele eu desembestei para o campo da filosofia e isso deixou o meu texto muito mais forte e muito mais denso.
A universidade é um lugar mágico. E os alunos podem escolher. Mesmo que os cursos sejam ruins, que os professores sejam medíocres, que direcionem suas mentes para a técnica ou para domesticação. Os alunos podem escolher não aceitar. Podem formar grupos de estudos, morar dentro da biblioteca, fomentar debates. A universidade dá muita liberdade. O que ocorre é que as gentes estão tão acostumadas ao cabresto que esquecem que podem mudar as coisas. Eu conclamo os alunos à rebelião. Eles podem.

Quais os principais desafios do jornalismo brasileiro hoje?

Primeiramente, há que mudar a universidade, subverter esse ensino que domestica. Há que se produzir um pensamento autóctone sobre o jornalismo, conhecer nossos pensadores do passado, avançar com eles, superá-los. Há que conhecer a história do nosso povo, há que estudar filosofia, reaprender a pensar. Depois disso, há que voltar a narrar a vida com um texto que descreve, que narra, que contextualiza.
Não há desculpas para mau jornalismo. Nem o tempo, nem as cinco pautas por dia, tampouco a multifunção. O bom jornalista encontra sua forma de burlar tudo isso. Seu compromisso deve ser com a informação que forma, não apenas o ritual informativo que informa sem estabelecer nexos. O jornalista é um feiticeiro que junta as letrinhas no caldeirão do texto. Dele tem de sair uma mensagem que incomode, que desaloje, que perturbe, que encha o leitor de aflição, que o mova para frente, que o faça pensar.
Há quem diga que o jornalismo morreu e que só exista propaganda. Eu não me curvo a essa assertiva, embora ela pareça arrasadora. O jornalismo resiste. Tem uma revista que se chama Retratos do Brasil, que faz bom jornalismo. Tem a publicação aqui de Santa Catarina, a Pobres e Nojentas, que faz bom jornalismo, têm uma infinidade de experiências por essa América Latina inteira. Os jornalistas estão aí, rompendo as barreiras, quebrando as regras do jornalismo domesticado. Basta que a gente tenha a delicadeza de saber ver. E utopicamente eu afirmo: isso haverá de ser maioria. Quando, não sei... mas, virá...

Deseja acrescentar algo?

Rebelião, rebelião, rebelião... Que os estudantes de todos os cursos de jornalismo do Brasil possam compreender que há mais coisas no jornalismo do que aquilo que é repetido em salas de aula. Ousem ouvir as vozes hereges, ousem criar grupos de estudo, ousem navegar nos livros velhos escondidos nas prateleiras. Esses não estão na internet, porque são perigosos demais.

Governo gaúcho acorda com MP pagamento provisório do piso do magistério


Camila Domingues/Palácio Piratini
Parcela complementar deve entrar na próxima folha de pagamento do magistério, a partir de 15 de maio | Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini

Rachel Duarte no SUL21

Uma solução parcial e provisória para adequar o Rio Grande do Sul à Lei Nacional do Piso do Magistério foi acordada entre o governo gaúcho e o Ministério Público do Estado (MP-RS). Nesta quarta-feira (25), o consenso de pagar uma parcela complementar a 20 mil professores que ainda não recebem R$ 1.451, valor estipulado pela legislação federal, foi peticionada em juízo. O estado aguarda homologação da proposta pela Justiça para pagar a compensação na próxima folha de pagamento, a partir de 15 de maio. A medida não irá incidir sobre o plano de carreira do magistério, motivo pelo qual o sindicato da categoria, Cpers, alega que não se trata de um real pagamento do piso.
O anúncio do acordo entre o executivo e o MP-RS foi por meio de coletiva conjunta de imprensa. Estiveram na mesma mesa o chefe da Casa Civil, Carlos Pestana, o procurador geral de Justiça, Eduardo de Lima Veiga e o procurador Evilásio Carvalho da Silva, da Procuradoria-Geral do Rio Grande do Sul (PGE). Todos defenderam o acordo como um esforço conjunto de valorização do magistério e cumprimento da exigência de remuneração de acordo com a Lei Nacional do Piso, enquanto se desdobram questionamentos dos estados em relação à correção dos valores.
“É um acordo parcial e provisório. Vigorará a partir da homologação até o momento da sentença transitado em julgado. Queremos garantir que nenhum professor no regime de 40 horas, proporcionalmente aos de 20 horas, recebam menos de R$ 1.451 até o resultado da ação”, salienta Pestana. Segundo o chefe da Casa Civil, a medida não terá incidência no Plano de Carreira. “Será uma forma de antecipação dos valores que o estado poderá ter que pagar se perder a ação que questiona os critérios do cálculo do piso”.
O procurador Evilásio lembra que o acordo não resolve o problema do cumprimento do piso por parte do estado. “A PGE vem enfrentando demandas individuais dos professores pleiteando o cumprimento da lei federal. É um tema que não está totalmente definido juridicamente”, falou, citando as pendências no Supremo Tribunal Federal. Em 2008, a decisão do STF de tornar obrigatório o pagamento do piso por parte dos estados causou reações dos governos que alegaram incapacidade orçamentária para cumprimento da lei. “A PGE entrou junto com outros estados com embargos de declaração para definir o termo inicial que diz desde quando é devido o piso nacional”, cita.
Camila Domingues/Palácio Piratini
"Queremos garantir que nenhum professor no regime de 40 horas, proporcionalmente aos de 20 horas, recebam menos de R$ 1.451 até o resultado da ação”, salientou Pestana durante coletiva | Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini

Outra decisão que ainda caberá ao STF refere-se ao questionamento sobre os índices de reajuste pelo Fundeb. “É inconstitucional porque retira dos estados a capacidade de autoorganização e de ter previsão orçamentária prévia. Ainda deve demorar o enfrentamento destas questões. Por isso, esta solução provisória se apresentou”, fala o procurador da PGE.

“Não haverá professor gaúcho que receberá valor abaixo do piso”, diz procurador Geral de Justiça

Lima Veiga considera o acordo uma forma de começar a desatar os nós do imbróglio jurídico e político que se criou em torno do cumprimento do piso do magistério. “Não haverá no RS um professor que receba abaixo do valor do piso. Quando conseguimos achar consensos sobre assuntos espinhosos como este, temos motivos de alegria. Estamos conversando a tempo. As ações são custosas, demoram e não chegam ao desejado. Então, buscamos um consenso”, afirmou.
A compensação não será para todos os professores, apenas para os 20 mil que ainda não recebem o valor do piso no vencimento básico. Se manterá o valor do básico vigente e será acrescida uma parcela complementar até atingir o valor do piso nacional. Se o piso se alterar, ao final da sentença, a parcela vai crescendo. De acordo com Pestana, o aumento de 76,68% concedido pelo governo para a categoria já irá incidir no plano de carreira, independente do resultado da ação judicial sobre os índices. “Ou seja, mesmo sem o acordo de agora, o valor percebido pelas categorias no plano seria o mesmo”, diz.
O chefe da Casa Civil fala ainda que a compensação não significa um abandono da tese do governo de apostar na correção pelo INPC para estipular os valores pagáveis aos professores como piso. “O piso deve ser reajustado pelo INPC. Não abrimos mão disso. Estamos atendendo parcialmente o que foi determinado na sentença em primeiro grau. E, avançando nas nossas conversas com a categoria e de valorização da educação”, avalia.
"Se os R$ 1.451 não incidirem no plano de carreira, não está se cumprindo o piso”, afirma Rejane de Oliveira| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“É igual ao que Yeda Crusius apresentou em 2009″, diz Cpers

A presidente do Cpers/Sindicato, Rejane de Oliveira, desconhece o acordo e alerta para o  que considera um jogo de palavras do governo. “Isto é para enganar a sociedade e os trabalhadores da educação. Isto não é cumprir o piso. Se os R$ 1.451 não incidirem no plano de carreira, não está se cumprindo o piso”, alerta. Ela compara a solução apresentada por governo e Ministério Público com a Lei do Completivo apresentada pela ex-governadora Yeda Crusius em 2009. “É igual ao que a Yeda apresentou, com os R$ 1,5 mil como pagamento máximo. O valor mudou agora, mas a lógica é a mesma. O governo irá olhar todos os elementos do contracheque. Quem não está no piso receberá complemento e quem já receber este valor não receberá nada”, explica. E conclui: “Isto é descumprir a lei e atacar o nosso plano de carreira”.
O procurador geral de Justiça, Eduardo de Lima Veiga fala que nem sempre o mundo legal é compatível ao mundo real. “As decisões judiciais, como as da Lei Britto, continuam se multiplicando e dificultando atendê-las, por exemplo. O mundo jurídico nem sempre equivale ao mundo real. Buscamos uma solução imediata, mas, ninguém abandonou as suas teses neste debate”, falou.
O chefe da Casa Civil, Carlos Pestana falou que o estado comportará  os valores da compensações  serão possíveis agora, depois de tantos desgastes com a categoria, porque se optou em não influenciar no plano de carreira. “O que afirmávamos era dificuldade de pagar o piso com todos os reflexos no plano de carreira. O que estamos falando agora é pagar o piso para contemplar os que ainda não recebem este valor no vencimento básico, que é algo em torno de 20 mil professores”, salientou.
Em caso de vencer a ação sobre a inconstitucionalidade dos critérios para o pagamento do piso, o governo disse que irá abater os valores dentro da nova correção. “Como é uma medida provisória ele funciona como uma antecipação, caso percamos. Se eventualmente vencermos, entra pelo INPC estas faixas e vamos abater no futuro. O valor do vencimento básico seria outro. Os cálculos seriam outros. Mas, não vamos retirar valor nenhum concedido aos servidores”, garante.