Faixa preta de caratê aos 14 anos, quatro vezes campeã absoluta de
kick boxing em seu país, com um título mundial de boxe no currículo, a
sérvia Duda Yankovich tem muita história para contar: sobre comunismo,
as quatro guerras que conheceu de perto, a necessidade de competir – e
ganhar – em todos os esportes que já praticou ao longo dos 33 anos de
idade e, principalmente, sobre começar do zero.
Quando chegou ao Brasil, dez anos atrás, a bela já tinha se formado
na escola de segurança internacional 007, trabalhado como segurança de
boate e como dublê em filmes e comerciais de televisão. Apesar de ainda
não ter conseguido a cidadania brasileira, foi a bandeira verde e
amarela que ela levantou ao conquistar o título mundial de boxe em 2006.
Nesta entrevista, Duda falou sobre todas as formas de preconceito que
já sofreu na vida: por ser muito nova, por ser do interior, por ser
mulher, por ser bonita – e como nocauteou um por um, de saia, maquiagem e
cabelo impecável nos ringues da vida. No auge da forma e da fama, a
sérvia levou uma rasteira de um empresário sacana que a fez perder
patrocínios, dinheiro, visibilidade e a pior parte: se machucar
gravemente em uma luta mal arranjada.
Após um ano, Duda volta com tudo para o próximo desafio: o MMA,
apresentação que une lutas como boxe, kick boxing e jiu jitsu. Para
variar, vai ser uma das poucas mulheres a lutar nessa categoria. Mas
para ela vai ser fácil. Afinal, para quem aprendeu a falar português
sozinha, em apenas quatro meses, aprender a lutar jiu jitsu é sopa.
Onde você nasceu?
Em uma cidadezinha da Sérvia de 40 mil habitantes, Jagodina, a pouco mais de 100 quilômetros de Belgrado.
Você fazia esportes desde pequena?
Quando era bem
pequena fiz natação, depois basquete, mas nunca gostei de fazer
esportes por fazer: sempre competi. No começo da adolescência entrei
para um grupo de dança folclórica, danças tradicionais da Sérvia.
Você nunca fez um esporte apenas por diversão?
Não
consigo fazer por fazer. Mesmo com outras coisas na vida, do que eu
gosto, levo a sério. Sempre fui boa aluna. Quando eu tinha de 11 para 12
anos, uma vizinha me pediu para ir com ela assistir a uma aula de
caratê. Ela ficou algumas semanas, e eu fiquei seis anos. Com 14 anos,
já era a mais nova faixa preta de caratê da história do país. Com 15
anos, deixei a minha cidade e me mudei para Belgrado, para fazer parte
da seleção. A minha família não queria, mas persisti. Economizei
dinheiro e paguei um internato. Nesse tempo, conquistei patrocínios e
apoio do governo. Na época, meu país era comunista e eles incentivavam
muito o esporte. Eu recebia um salário do governo porque era medalhista
internacional. Todo mundo reclama do comunismo, mas eu acho que a pior
época foi quando acabou o comunismo, em 1980, e começou uma briga pelo
poder. Eu era muito pequena, mas me lembro que nunca faltava nada. Como
esportista, fui muito apoiada.
Como foi a passagem para o kick boxing?
Eu estava
desanimada. Não me deixavam competir fora porque eu era muito jovem.
Então fui procurar alguma outra coisa para fazer. Eu treinava em um
clube chamado Estrela Vermelha, que tinha vários outros esportes.
Assisti a uma aula de kick boxing e gostei. No começo, sofria
preconceito por parte dos treinadores, “você é menina, bonitinha, tem
tanta coisa para você fazer...” Antes disso, já tinha sofrido
preconceito por ser muito nova e por ser do interior, porque tinha
sotaque. E adolescentes são muito cruéis. Nos primeiros meses eu chorava
todos os dias, mas depois virei uma personalidade, e as pessoas não me
olharam mais como a menina do interior, e sim como a atleta de seleção. O
esporte sempre abre portas, né? No meu país é muito complicado você
conseguir ver o mundo. Primeiro porque é cultural: as mulheres nascem
para casar, ter filhos, às vezes ter um emprego, ou serem sustentadas
pelo marido. Quando eu já morava no Brasil, ligava para a minha avó e
ela dizia: “Tudo bem filha, você é campeã mundial, mas quando vai
casar?”. Eu só me encaixava no esporte.
E no kick boxing você logo começou a competir...
Sim.
No começo eu apanhei bastante. Vinha de um esporte sem contato para um
de total contato. Como os treinadores não me ajudavam muito, foi
difícil. Mas depois de um ano eles perceberam que não tinham como me
tirar de lá, começaram a investir mais tempo em me treinar e rapidamente
comecei a dar resultados. Fui campeã absoluta do meu país por quatro
anos, participei de dois campeonatos mundiais entre 17 anos e 23 anos.
Nessa época você estudava?
Comecei a faculdade de educação física lá e terminei aqui no Brasil.
Meu
pai e meu tio foram convocados várias vezes. Nunca sabíamos se voltariam. E a cultura do país é a de um lugar sempre em guerra.
Olho por olho, dente por dente. Se você me faz algo, vai ter troco,
mesmo que demore
Vivendo sozinha?
Sozinha desde os 16 anos. Eu não
sou típica... Lá as mulheres casam cedo, para fugir de casa ou para
constituir família. Eu tinha 13 ou 14 anos e já sabia que essa não seria
a minha vida. Oportunamente, quando acabar a minha carreira, posso
casar, ter filhos. Mas sempre achei que a gente tem mais a dar do que o
que a natureza ou a cultura propõem. Porque isso todo mundo pode. Mas
fazer escolhas é mais difícil. É mais fácil você seguir fazendo o que
esperam de você.
Você já viveu quatro guerras. Tem alguma imagem que ficou registrada na sua mente?
Nas
três primeiras eu era bem nova. Então lembro apenas das filas enormes
para comprar coisas, porque a gente tinha que estocar comida e água.
Ficava a família inteira na fila, porque cada um tinha direito a uma
quantidade limitada de comida. Meu pai e meu tio foram convocados várias
vezes e nós não sabíamos se eles voltariam para casa. A cultura do meu
país é a de um lugar que sempre viveu em guerra. O olho por olho, dente
por dente. Se você me faz uma coisa agora, ela vai ter troco, mesmo que
demore alguns anos.
Anotam no caderninho?
As pessoas são mais duras,
mais defensivas. Me lembro que treinava kick boxing no porão de uma
academia e um dia um cara chegou e gritou “Estamos em guerra!” e nós nem
demos bola, até parece que um lugar entra em guerra assim. Quando
saímos na rua, à noite, não tinha uma luz acesa, um carro, uma pessoa,
nada. Às vezes, passava um carro com umas pessoas gritando “guerra!”, e
só. E tinha aquela coisa de se enfiar em abrigos quando uma bomba era
anunciada. No final, as pessoas nem iam mais para os abrigos, se
acostumaram com aquilo. Em guerra nada funciona. Você não vive. Academia
não funciona, empresas, escolas, nada. Imagina? Por isso eu decidi vir
para o Brasil. Eu já tinha vindo em 1998 competir e fiz amigos. A guerra
aconteceu em 1999. Não tinha perspectiva no meu país. Queria começar
algo novo. Fui primeiro para Londrina (no Paraná) dar aulas de kick
boxing. Percebi que ainda levava jeito para a coisa e voltei a competir.
E estou aqui ainda.
É verdade que as meninas desistiam de lutar quando viam quem era a adversária?
Primeiro
não me conheciam, porque eu era apenas treinadora. Mas quando eu voltei
a competir, ganhava todas as lutas. E por nocaute. Aí ninguém mais se
inscrevia. Não é que eu ganhava todas, não tinha contra quem lutar.
Passei a me inscrever com outro nome, o sobrenome do meu marido
brasileiro. Aí elas se inscreviam, mas quando subiam no ringue falavam
“A Duda, não!” e desciam.
Você casou assim que chegou ao Brasil?
Eu cheguei
e fui trabalhar na academia dessa pessoa, que eu já conhecia desde 1998
quando vim pela primeira vez. A gente começou a namorar. Casamos porque
meu visto era de turista. Depois de três anos nos separamos. Só agora
eu posso entrar com um pedido de naturalização.
Boxe
era um esporte muito masculino. Eu lembro que ia visitar a academia
de um treinador chamado Miguel de Oliveira, em Londrina, e ele
falava: 'Não! Mulher não entra na minha academia!' Vai lá hoje ver
quantas mulheres treinam
Mas você sempre lutou pelo Brasil.
Sempre. Mas só
posso entrar com o pedido de naturalização agora, após dez anos de
permanência sem interrupção. Eu gostaria muito, porque, sem ofensas, sou
muito mais brasileira do que alguns brasileiros, porque eu optei por
isso. Foi uma escolha minha.
Voltando para o ringue, como você foi do kick boxing para o boxe?
O
boxe era um esporte extremamente masculino. Eu me lembro que ia visitar
a academia de um treinador chamado Miguel de Oliveira, lá em Londrina, e
ele falava: “Não! Mulher não entra na minha academia!” Vai lá hoje ver
quantas mulheres treinam. Eu era treinadora da equipe de kick boxing, a
gente foi para o campeonato brasileiro e levou 12 medalhas. Ninguém
acreditava! Mas eu era muito rígida. Me chamavam de Frida, nazista,
porque qualquer coisa eu apontava para o chão e dizia: “Dez! (flexões)”
e “Quem não quiser obedecer, a porta da academia está aberta”. Eu não
podia dar muita folga para eles, ainda mais por ser mulher. Entre os
alunos, tinha alguns que me agradeciam, dizendo que a vida mudou, que o
casamento melhorou, que tinha parado de usar drogas... Isso me arrepia
só de lembrar! E isso fazia com que eu me dedicasse mais, me esforçasse
mais. Até hoje existe a academia, os atletas que eu formei dão aula, o
sistema de treino ainda é o mesmo que eu deixei. Fico muito emocionada
com isso.
E o boxe?
Naquela época, mais ou menos em 2003,
tinha um programa na televisão sobre boxe, do Luciano do Valle, que
tinha patrocínio de uma companhia aérea, o que é muito importante –
aliás, eu faço um apelo para que haja mais patrocínio para o boxe. No
programa sempre passavam lutas femininas e masculinas. Aí surgiu o
convite e eu pensei: “Ah, não deve ser muito diferente”. Mas é
completamente diferente. Não sabia como chegar na menina sem chutar. Mas
quando eu cheguei, nocauteei. E toda semana eu ia lutar. Ninguém tinha
dinheiro, a confederação não tinha dinheiro. No boxe tinha mulher pra
caramba. Voltei nessa academia e o treinador falava “Se você quiser,
fica aí no cantinho”. Aí fui crescendo, melhorando, fazendo luva com os
caras. Até que em 2003 fizeram o primeiro campeonato feminino nacional
de boxe e eu participei. Em 2004 e 2005 ganhei. Vim para São Paulo
treinar com a seleção masculina porque não existia a feminina. Tinha
dias em que eu chegava em casa tão cansada que desmaiava no sofá e
acordava só no dia seguinte. Apanhava, chorava... Fui lutar o campeonato
panamericano e peguei medalha de bronze. Fui pesquisar sobre a mulher
que ganhou de mim, porque ela era um caminhão. Vi que ela viajava para
lutar, tinha mais de 50 lutas fora. Então resolvi me profissionalizar.
Quando você é profissional, o treino é diferente, você se prepara para
lutar contra aquela pessoa. Você estuda, cria técnicas para aquela luta.
Aí que começa a história na verdade, né? Mas você começou várias coisas do zero...
Pois
é, olha quantas vezes eu comecei do zero. Sempre quero desafios. Tive
muita sorte também. Mas hoje acho que em qualquer lugar que eu me jogar,
eu me adapto.
Você aprendeu a falar português sozinha?
Sozinha.
Eu falava inglês muito bem, então colocava filmes em inglês com a
legenda em português, em português com legenda em inglês, depois
colocava português com a legenda em português. Demorei quatro meses para
falar fluentemente. E terminei a faculdade de educação física aqui.
Como veio o título mundial de boxe?
Para você
disputar o título mundial, precisa ter um certo cartel de lutas. Eu vim
para São Paulo atrás do Miguel. A equipe não veio logo de cara. Você
precisa mostrar resultados para que as pessoas te ajudem e precisa de
ajuda das pessoas para mostrar resultados. Isso sempre foi muito ruim.
Por exemplo, eu vou estrear no MMA, começar outra coisa, e os
patrocinadores dizem: “estreia primeiro, e se você se sair bem nós te
apoiamos”. Isso já me desanimou muito, já pensei em desistir.
Você passou aperto com um empresário sacana...
As
pessoas, em qualquer área, querem ganhar dinheiro rapidamente, em vez
de ganhar aos poucos de forma pensada. Faltou paciência e bom senso. No
último ano do nosso contrato, ele marcava lutas para mim, eu me
preparava pra caramba – isso exige investimento de tempo e dinheiro – e
pouco antes ele dizia que a luta havia sido cancelada. Mas eu não sabia o
que estava acontecendo realmente. Foi muito triste, cansativo. E perdi a
atenção da mídia. Sem mídia e sem lutar, perdi patrocínios. Mas tive
culpa também, porque a pessoa tinha um histórico e eu não fui pesquisar
antes.
No meu país as
mulheres nascem para casar, ter filhos, serem sustentadas pelo
marido. Quando eu já morava no Brasil, ligava para a minha avó e
ela dizia: 'Tudo bem, você é campeã mundial, mas quando vai
casar?'
Como você se machucou?
Eu
estava há um ano sem lutar. O contrato tinha acabado, eu não tinha mais
compromissos e precisava de dinheiro. Aí fechei uma luta que não era
para fechar. Era uma menina muito boa, de duas categorias acima do peso,
fora de casa. Mas eu não tinha escolha. Não valeu o cinturão mundial
que eu tinha de defender, porque era outra categoria. Mas eu não pensei
que poderia me machucar. E eu tinha de pensar nisso. Foi algo muito mais
sério do que uma simples lesão. Tive uma fratura no nariz, mas não me
disseram que estava fraturado. Eu voltei para o Brasil com muita dor e
achava que era sinusite. Tomava remédio e a dor não passava. Aí tive uma
crise muito forte, queria cortar minha cabeça fora de dor. Tinha uma
fratura aberta. Eu estava sem dinheiro, sem patrocínio, sem poder
lutar... Entrei em depressão profunda.
Foi uma parada forçada.
Não sabia mais onde eu
estava, quem eu era. Operei em outubro, pelo SUS, graças a pessoas a
quem eu posso, devo e vou agradecer. Mas tive de pagar um monte de
coisas, gastei o pouco dinheiro que tinha guardado, tive de entregar meu
apartamento, meu carro. Não tinha ninguém ao meu lado. Tentava correr e
não conseguia, qualquer toque no nariz sangrava e eu não queria mais
sair de casa. Aí resolvi dar um tempo. Fui para a minha casa na Sérvia.
Tinha até pensado em ficar por lá. Fui passar um tempo na Tailândia e
pensei: ainda não é hora de parar.
Peguei minhas malas e voltei para
cá. Mas quis mudar de paisagem e fui para o Rio. Tinha uma academia boa
de treinamento, eu conhecia a equipe. Tive de começar praticamente do
zero porque estava totalmente fora de forma. Aí fui convivendo com os
atletas, fui melhorando e hoje acho que estou na minha melhor forma.
Lutei há poucos meses com uma africana valendo o cinturão e perdi por
pontos. Mas fiquei muito satisfeita com a minha performance. Treinei
poucos meses para esta luta. Foram dez rounds.
E agora chega de boxe?
Não abandonei o boxe, mas
recebi uma proposta para ir para o MMA e topei. Agradeço essa minha fase
aos patrocinadores – Cerpa, Amazon Power –, à academia X-GYM, que me
acolhe, e à dedicação do Josuel Distak, meu treinador, e do preparador
físico Rogério Camões.
Eu nem sabia que tinha mulheres no MMA...
Tem
poucas. E é um jogo de xadrez, como toda luta. Você tem de prever os
movimentos, tem muitas regras, tem de pensar. Não são só dois caras se
batendo. Hoje eu tenho preparador físico, técnico, parceiros de treino e
psicólogo. As pessoas acham que atleta é saudável. É saudável nada!
Vive no limite, machucado, cheio de dores... Mas o MMA talvez venha
agora para coroar todos estes anos em diversas lutas. E lá vou eu
começar tudo de novo.