As velhas redações acreditavam em jornalismo honesto. Não é o
caso das nossas semanais. Jornais e revistas ainda não perceberam que os
tempos de golpismo acabaram e acreditam manter a velha in fluência do
Oiapoque ao Chuí.
Ocorre-me recordar Claudio Marques,
que se dizia jornalista como tantos outros dispostos a enganar o público
e, eventualmente, a si próprio. Assinava uma coluna no Shopping News, jornal publicitário de circulação gratuita na São Paulo de 1975.
Tempo de ditadura e de recrudescimento do Terror de Estado após o
discurso dito “da pá de cal”, pronunciado no começo de agosto pelo
ditador Ernesto Geisel para avisar aturdidos navegantes que “a distensão
lenta, gradual, porém segura” haveria de sofrer uma interrupção. Foi
nesta ocasião que Ulysses Guimarães, em pronunciamento na Câmara,
comparou Geisel a Idi Amin Dada.
Pois Claudio Marques, caçador de comunistas agachados atrás de cada
esquina, passava seu tempo a denunciar os vermelhos comandados por Vlado
Herzog, a cujos cuidados estavam entregues os programas noticiosos da
TV Cultura. Marques contava com a aprovação ampla, geral e irrestrita do
DOI-Codi, ex-Operação Bandeirantes, e foi enfim premiado com a prisão,
ou melhor, o sequestro dos jornalistas alvejados, a começar por Herzog,
assassinado pelos torturadores no mesmo dia em que deu entrada no
quartel do DOI-Codi. Dia 25 de outubro, um sábado.
Os tempos mudaram, felizmente. Não há mais torturadores e porões para
hospedá-los e aos seus instrumentos, por exemplo. Há, entretanto,
herdeiros de Claudio Marques afinados com os dias de hoje e ainda
velhacos e daninhos. A semelhança entre o caçador de comunistas a
serviço do DOI-Codi e esses jornalistas (jornalistas?) é percebida pela
obsessiva preocupação que cultivam desde a primeira eleição de Lula com a
quantidade de anúncios governistas nas páginas de CartaCapital.
Trata-se, obviamente, de uma ofensa gravíssima ao pretender insinuar,
com leveza de britadeira, que vendemos a alma ao Sapo Barbudo. Alguém,
no meio da tigrada, proclama: CartaCapital não tem credibilidade.
Não ouso afirmar que a vice-procuradora da Justiça Eleitoral Sandra
Cureau (pronuncie Quirrô) seja sucedâneo do DOI-Codi. Creio, porém, que
na sua ação inquisidora desfechada contra esta publicação ela tenha
levado em conta as aleivosias assacadas contra nós por sem-número de
colegas (colegas?), embora não tenha dúvidas quanto à origem tucana da
assoprada final e decisiva: o candidato José Serra gosta de dar
telefonemas. Assim como não me abalo a crer que o nosso apoio à
candidatura de Dilma Rousseff seja determinante. Obrigatórios sim, a
definição e seus motivos desde o começo da campanha oficial, como se
dera em 2002 e 2006 em relação a Lula. Dever para com os eleitores.
Registro que o Estadão no domingo 26 decidiu desvendar a
evidência. Um humorista diria: surpresa, estão com o Serra, e eu que até
ontem não tinha percebido. Melhor o Estadão, de todo modo, do que o resto da tropa de choque, Globo, Folha, Veja,
a agirem como partido político, conforme a óbvia constatação do
presidente da República. Barack Obama foi além quando disse que não
daria entrevista à Fox porque esta não era órgão midiático e sim
“partido político”.
Lula errou, na nossa visão, ao afirmar: “A opinião pública somos nós”. A
frase é certamente perigosa. Da mesma forma foi erro incluir tempos
atrás no programa de governo a criação de uma entidade destinada a
classificar os órgãos da mídia ao sabor dos seus comportamentos em
relação aos direitos humanos. Esta não é tarefa governista, e CartaCapital não
usou meias-palavras na ocasião para condenar a iniciativa. Diga-se que o
prato indigesto saiu prontamente do cardápio, graças a uma barganha
lamentável pela qual se fez a felicidade dos torturadores da ditadura e
dos seus mandantes, muitos já no além, ao aceitar a ideia da anistia
polivalente.
CartaCapital reprovou também a criação de uma tevê pública
federal por enxergar de saída o seu inescapável destino: servir ao poder
contingente, como se dá com a Cultura paulista, em mãos tucanas há 16
anos. Resta ver se o Brasil estaria maduro para uma tevê estatal,
nascida do entendimento de que esta há de ser uma instituição permanente
a servir à nação em lugar do governo do momento. Sinceramente, não
aposto nesta maturidade.
O fenômeno que mais me aflige põe-se, no entanto, a propor por quês. Por
que os profissionais da mídia nativa aderem tão compacta e
fervorosamente ao pensamento dos patrões? Por que lhe tomam as dores
como se eles mesmos pertencessem à categoria? Uma premissa. Em termos
econômicos, a situação nas redações é semelhante àquela da população
brasileira em geral. Os jornalistas graúdos, assinaturas celebradas,
ganham mais que os colegas americanos e europeus, e nem se fale dos
salários da nossa televisão. Astronômicos, trafegamos entre nababos. Na
zona cinzenta flutuam os remediados. À ralé sobra esperança. A maioria
dos recém-formados não tem emprego. Este, ninguém que conseguiu quer
perder.
Pode-se concluir que os graúdos curvam-se diante da generosidade
patronal enquanto os miúdos em tempos bicudos contentam-se com as
migalhas? Talvez a explicação valha em relação a muitos casos graúdos e
miúdos. Mas há que se ressaltar, em relação a outros, o ardor com que
assumem os interesses do patrão. Estamos diante de uma identificação
visceral, a ponto de justificar, no meu ponto de vista, uma investigação
profunda a se valer das lições de Balzac e de Freud. Ambos ficariam
muito impressionados, creio eu, ao registrar que os profissionais
nativos chamam o patrão de colega, e nisto são únicos no mundo. Quem
sabe mais ainda Balzac do que Freud.
No mais, vale acentuar que esta unicidade, esta exclusividade, invade
outros terrenos. Um: o nosso sindicato se dispõe de bom grado a oferecer
aos empresários da comunicação carteirinha de jornalista. Dois: sem
falar da mediocridade dolorosa, a nossa mídia é única na sua capacidade
de se alinhar de um lado só na hora de uma eleição, por exemplo. E não
somente nesta. Mundo democrático afora vigora o pluralismo que a Folha
de S.Paulo, com inefável hipocrisia, afirma existir em suas páginas. Nos
Estados Unidos, no Reino Unido, na França, na Alemanha, só para citar
alguns países, tem vez o jornalismo de todas as tendências. Aqui não, só
existe uma, a favor da minoria privilegiada.
O que espanta é a tenacidade com que essa mídia permanece atada ao
passado oligárquico. Os editoriais de hoje são absurdamente iguais
àqueles de 47 anos atrás, que invocavam o golpe para impedir a
cubanização do Brasil. Agora falam em mexicanização e venezuelização, e
clamam contra o assalto à democracia e à liberdade de imprensa,
perpetrado pelo presidente da República e seu partido e fadado a
prosseguir à sombra de Dilma Rousseff.
Durante o ano de 1963 e nos primeiros meses de 1964 anunciavam a
iminente marcha da subversão. Nunca passou. Veio foi a Marcha da
Família, com Deus e pela Liberdade, de imponentes efeitos subversivos. E
lá se foi a liberdade, com a bênção dos editorialistas. Os quais aí
estão agora para prestar seu solerte serviço. Salvo raras exceções,
editorialistas, colunistas, articulistas. Diretores, redatores-chefes,
editores, repórteres. A turma toda.
Os colegas do lado de lá, um exército, prestam-se a acusar sem provas,
omitir fatos, frequentemente mentir com a expressão do dever cumprido.
Encantou-me, na Folha de S.Paulo de segunda 27 a entrevista da
vice-procuradora Sandra Cureau, aquela que atendeu a uma entrevista
anônima para cometer uma inominável prepotência contra CartaCapital,
esta sim, verdadeiro atentado à liberdade de imprensa. Mas a
entrevistadora ali estava para agradar à doutora, a ponto de mencionar
seus cabelos loiros e olhos azuis. Nem foi capaz, está claro, de uma
única, escassa pergunta a respeito da ação movida contra nós.
Recordo que na semana passada manifestamos a certeza de que não
contaríamos com a solidariedade dos barões da mídia e dos seus sabujos,
bem como das chamadas entidades de classe. Aqueles são mestres em mau
jornalismo. Mas será mesmo jornalismo? Quanto a estas, confirmam apenas a
sua patética inutilidade. Para não dizer do viés tendencioso, ou
francamente alinhado.
Patética é também um bom qualificativo para a atuação da mídia nativa ao
longo deste ano, iniciado com a previsão de uma retumbante vitória
tucana. E quando se viu que o ardil de Lula funcionava e que Dilma
crescia graças inclusive ao seu próprio desempenho, começou a sarabanda.
Não se diga que os velhos morteiros deixaram de funcionar. É inegável,
porém, que munição foi oferecida de graça pelo próprio PT, mais uma vez,
do seu lado a dar tiros no pé. Está claro que o fogo aberto para
denunciar ameaças à democracia e à liberdade de imprensa não passa de
tentativa frustrada de invocar fantasmas do passado. Pesou, isto sim, o
caso Erenice, no qual se mesclam dois fenômenos tão antigos quanto os
fantasmas, contudo resistentes, dois vícios gravíssimos da tradição
verde-amarela, dois pecados impredoáveis: nepotismo e clientelismo.
É espantoso: a rapaziada ainda não percebeu que o País mudou em latitude
e longitude em relação à época do golpe. Certo é que a mídia detinha
amplo poder há 50 anos, quadra favorável à influência dos ditos
formadores de opinião. Bastava alcançar os senhores da minoria e seus
aspirantes para alcançar os fins buscados.
Desta vez com o segundo turno, a mídia poderá enxergar no resultado um
prêmio de consolação. Vale sublinhar, entretanto, que o PT concedeu
espaço exagerado aos seus aloprados, como já houve em outras ocasiões, e
mostrou, assim, lacunas sérias na organização e na união. Cabe ao
presidente da República anotar que muitos dos problemas surgidos para
seu governo tiveram sua origem nas fileiras petistas.
Os coronéis ainda mandavam em largas áreas e na hora da eleição lotavam a
caçamba do caminhão depois de colocar a cédula preenchida nas mãos dos
seus peões. Chamava-se voto de cabresto, e dava certo. Esse gênero de
penosas tradições foi tragado pela transformação de um país então de 70
milhões de habitantes e hoje de 200. E com os documentos em dia para
chegar logo à maioridade, à contemporaneidade do mundo.
Os senhores não apreciam a perspectiva e torcem contra. Deixa como está
para ver como fica. O primeiro ato da debacle foi encenado na eleição de
Fernando Henrique Cardoso e no seu segundo mandato. Cabe a ele o papel
de primeiro motor da mudança, a ser concretizada no governo Lula.
FHC em 2002 lança sobre seu candidato José Serra uma sombra espessa e
maligna. Com baixo índice de aprovação e pífia atuação, de sorte a
deixar ao sucessor burras à míngua, o príncipe dos sociólogos torna-se
cabo eleitoral de Lula. A maioria tira do governo FHC lições evidentes e
parte para a votação inédita, a favor do ex-metalúrgico em vez do
costumeiro bacharel engravatado. A identificação com o igual cresce
naturalmente, não é imediata nas proporções que fermentarão em seguida.
A maioria não é mais aquela, a pressão dos patrões e dos capatazes não a condiciona e, principalmente, não lê jornal e ao Jornal Nacional prefere
a novela e os Faustões da vida. Os editoriais e as manchetes mantêm,
contudo, o tom de outrora, na desmiolada convicção de atingir a todos,
do Oiapoque ao Chuí.
De todo modo, não nos iludimos quanto à possibilidade de uma redenção da
mídia, pelo menos a curto prazo. Os caminhos são conhecidos porque
experimentados com ótimos resultados em países mais adiantados. Difícil,
por ora, percorrê-los. Trata-se de criar leis para limitar o monopólio
da comunicação e conter a influência patronal nas redações, ao se
cancelar, inclusive, e de vez, a figura do diretor de redação por
direito divino.
Leis nesse sentido estão em vigor em países de democracia mais antiga e
protegida. Aqui é dramaticamente visível, como cabo das tormentas em
meio ao mar revolto, o obstáculo representado pelo próprio Congresso,
que deveria debater e aprovar as novas leis. Inúmeros deputados e
senadores são donos de instrumentos midiáticos e não é por aí que
rapidamente chegaremos a uma solução aceitável, assim como não seria se o
governo pretendesse ditar as regras.
Sobram perguntas, angustiantes: o que haverá de ler, ou ouvir, o cidadão
consciente quando interessado em saber dos fatos? Em quem confiar no
espectro sombrio da mídia nativa? Como distinguir entre a informação
honesta e a opinião eventualmente distorcida, corrompida até pelo
partidarismo?
* Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital