Depois de uma aparente lua-de-mel, que marcou os cem dias iniciais de seu governo, a presidente Dilma Rousseff enfrenta
o revés da primeira grave crise política, com as denúncias envolvendo a
súbita evolução patrimonial do ministro-chefe da Casa Civil, Antonio Palocci, e, na sequência, a derrota na votação do Código Florestal. Uma derrota imposta não pela oposição, hoje minguada, mas por um aliado da própria coalizão, o PMDB. Um fracasso que representa, na opinião do professor de filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap, Marcos Nobre,
o fim do grande projeto político de Dilma: governar com relativa
autonomia, com indicações ao segundo escalão que vinham seguindo
critérios mais técnicos, sem se dobrar ao "pemedebismo", termo preferido
de Nobre para denominar a cultura política brasileira. Para Nobre, os recentes acontecimentos, que incluem a "absurda" entrada do ex-presidente Lula em cena, mostram que Dilma perdeu
a queda-de-braço e vai ter que ceder. Terá uma tarefa "muito difícil"
para se reeleger e deve exercer o mesmo papel de seus antecessores: ser
apenas a síndica do condomínio pemedebista. Com um agravante, avisa: o
de que o sistema político se esgotou e tende a levar o país à paralisia.
A entrevista é de Cristian Klein e publicada pelo jornal Valor,
.
Eis a entrevista.
O que aconteceu com o governo Dilma?
A Dilma teve de renegociar os acordos feitos pelo Lula. O Lula
ampliou a base do governo a tal ponto que não existe mais oposição.
Quando acontece isso, a oposição vai para dentro do governo. Na verdade,
o jogo entre governo e oposição é entre PT e PMDB e,
digamos, seus satélites. Nesse processo de ampliação da base, Dilma
resolveu aproveitar o que chamo de excesso de adesão para tentar fazer
uma seleção dos quadros do segundo escalão. Quis aproveitar a situação a
favor dela. Estava usando todo seu capital eleitoral para fazer essa
negociação dura com o PMDB e com os outros partidos, para que aqueles
que fossem acolhidos no segundo escalão fossem mais técnicos, com mais
qualidade gerencial, e política também, no sentido de tentar encontrar
currículos que fossem mais "ficha limpa". E o caso Palocci termina essa tentativa da Dilma. Nesse momento, a Dilma vai entregar o que o PMDB pedir. É a parte triste da história.
A Dilma errou ao conduzir a negociação política e ao escalar Palocci para a Casa Civil?
Não sei se errou porque o caso é muito estranho e não temos esclarecimento. Se Palocci não
der explicações razoáveis, ela errou com certeza porque não aplicou os
critérios que ela mesma disse que iria aplicar, no primeiro escalão.
Parlamentares reclamam muito de não serem atendidos pela
presidente. Consta que a cada dez indicações de nomes levados por
Palocci, Dilma aceitaria, por exemplo, apenas dois ou três.
Isso tem lá sua parte de verdade e tem também a parte de que o Palocci está tentando tirar a responsabilidade dele mesmo.
Como a presidente pôde perder a votação do Código Florestal tendo uma base tão grande? Faltou habilidade ou seria inevitável?
Inevitável nada é. E habilidade realmente não é uma característica dos líderes escolhidos pela Dilma.
Que líderes?
O [Cândido] Vaccarezza [líder do governo na Câmara]. É de
uma inabilidade flagrante.
Ele subiu à tribuna dizendo que tinha acabado de conversar
com a Dilma, que teria lhe dito considerar uma "vergonha" o Código que a
Câmara iria aprovar. Isso causou muitas reações.
Além da ameaça que aparentemente existiu de que a Dilma demitiria os
ministros do PMDB. Então, o que se tem é um processo de chantagem mútua.
O PMDB chantageia porque quer as nomeações, e a Dilma chantageia de
volta dizendo: "Então eu demito". Aí, é uma queda-de-braço. Só que, com o
caso Palocci, enfraqueceu o lado da Dilma. O enfraquecimento dela foi tal que o Lula ocupou o espaço dela. E isso realmente é um dos grandes absurdos do momento político brasileiro. Ele obriga a Dilma a
sair a público para falar a favor do seu ministro, mesmo que em termos
muito genéricos. Isso só ajuda a aumentar o estado de confusão da
situação política brasileira. Não ajuda em nada a intervenção do Lula.
Há um duplo comando?
Não... Porque em política existe uma regra que é: há uma pessoa que
tem a caneta. Isso faz muita diferença. Mas aumenta a confusão. O que
aconteceu no Código Florestal? O PMDB disse: "Olha, se
continuarem neste ritmo as exigências que estão sendo feitas para as
nomeações de segundo escalão, vamos votar contra o governo". E
escolheram um projeto, o Código Florestal, que não é vital para o funcionamento da máquina governamental. Escolheram quando perceberam que Dilma endureceu
porque tomou essa votação como se fosse, no parlamentarismo, um voto de
desconfiança. Ela levou a votação nesses termos, coisa que não deveria
ter feito. Resolveu tirar a limpo e quando, no meio, acontece o caso Palocci, ela não tinha mais força para enfrentar essa base.
Havia saída?
Qualquer que seja o governo ele acaba sendo submetido à lógica do
sistema político, que funciona de maneira autônoma. Algo do tipo: "Se
você não mexer comigo, eu não mexo com você". Isso significa que
funciona na base da chantagem mútua e na base do veto mútuo. Um exemplo:
o caso dos líderes parlamentares religiosos que fizeram um acordo de
que não chamariam o Palocci à Câmara se fosse retirado de pauta o
material contra homofobia do Ministério da Educação. É um acordo quase
mafioso do sistema político, de autoproteção.
Isso corresponde a um processo de cartelização, que caracterizaria atualmente os sistemas partidários pelo mundo?
Não, é uma coisa muito brasileira e, acho, um pouco incomparável. O
PMDB criou, lá na década de 80, uma cultura política duradoura para o
Brasil, que diz assim: "Se você entrar para o partido - qualquer um pode
entrar -, se você se organizar como grupo de pressão, tem o seu
interesse garantido e pode ter certeza de que será consultado a respeito
de qualquer assunto que diz respeito a esse interesse". Portanto, tem
direito de veto. Com isso, você não tem debate público real, porque as
questões não vão para o debate, são vetadas antes, como nesse caso que
dei do [deputado federal do PR do Rio, Anthony] Garotinho versus
Palocci.
A imagem de uma presidente refém de grupos de pressão não é
contraditória com a ideia predominante de que o governo tem a primazia e
sua posição quase sempre prevalece, porque pode oferecer cargos, verbas
etc?
É, mas eu acho que essa ideia de um governo todo-poderoso é
completamente ilusória. Basta ver o que o Lula, do alto de seus 80% de
popularidade, conseguiu passar no Congresso. O que ele conseguiu passar
de realmente decisivo? Nada. O desafio anual do governo é passar a LDO
[Lei de Diretrizes Orçamentárias] e depois passar a lei orçamentária.
Qual é a solução para se escapar desse pemedebismo?
É preciso ter governos mais enxutos e mais coesos, que coloquem uma linha e digam: a partir daqui eu não aceito.
Mesmo que seja um governo minoritário?
Mesmo. Mas aí é preciso ter um apoo popular significativo para você
conseguir se manter. Algum movimento vai ter que ser feito. E
necessariamente é diminuir a adesão ao governo. Num certo sentido, Dilma
estava fazendo isso, ou tentando fazer, ao colocar critérios rígidos
para escolher o segundo escalão. Com o caso Palocci ela perde esse
grande projeto político que era dela e vai simplesmente continuar sendo
uma síndica do pemedebismo.
É factível que o Brasil venha a ter um governo minoritário ao estilo dos escandinavos com essa cultura política de barganha?
É, mas aí você está me dizendo que o pemedebismo é inevitável. Pode
ser. A maioria das pessoas do PT, por exemplo, com quem eu converso,
dizem que esta é a estrutura, que se você quiser fazer política pela
esquerda, precisa ocupar essa cultura política pela esquerda. O que eu
posso dizer contra um argumento realista? Nada. Por que o realismo
sempre está certo. Agora, o que muda o mundo não é o realismo. Pode-se
dizer: "Isso é ser realista, é ser pragmático". Mas, bom, nós vamos para
o buraco, vamos construir uma democracia horrorosa, que é o que estamos
fazendo. É um sistema que funciona na base da chantagem.
Esse modelo de pragmatismo, de maior diluição ideológica, não
vem se tornando uma tendência mundial, como o caso clássico do Partido
Trabalhista britânico?
Com toda razão. Esse movimento para o centro você pode observar em
vários países, não vou dizer em todos. Mas no Brasil, a tendência tem
uma certa especificidade. Porque não existe na Espanha, na Alemanha, na
Escandinávia, essa tradição pemedebista. Ou seja, ser político é estar
no poder, seja qual for o governo.
Não seria esta a origem do problema: o alto custo de ser oposição no Brasil? As reformas não deveriam começar por aí?
Sem dúvida. É um problema de cultura política, sim, e é um problema
de estrutura também. Você tem uma concentração de recursos na União que é
absurda. A União pode manter Estados e municípios a pão e água. Isto
não é possível. Esse grau de concentração foi produzido em grande medida
pelo Plano Real que retomou o poder para a União, um poder que era
disseminado pelos Estados. Os Estados faziam política econômica! Esse
processo de concentração e fortalecimento da União foi importante para
se estabelecer alguma espécie de estabilidade, mas tem agora um efeito
perverso. Porque o sistema político pemedebista, que era a fragmentação
entre os Estados, se readaptou a esse modelo centralizado. O que
acontece num sistema pemedebizado? Significa que a Dilma,
a partir de agora, é refém desse sistema e que ela vai operar nos
limites que este sistema colocar para ela. Qual é o problema disso? É
que leva à paralisia.
Por que ela é refém e o Lula não foi?
O Lula foi, claro que foi, ele montou este sistema. E
ele montou de tal maneira que ele aparecia como alguém que mandava
muito e não mandava coisa alguma.
O Lula não mandava?
Muito pouco. Por onde o governo Lula passou neste sistema de vetos? Pense nas políticas pelas quais o Lula é conhecido: Bolsa-Família, Luz para Todos, os PACs,
que estão empacados. Foi por onde o sistema não vetava. Quem é contra o
aumento do salário mínimo? Quem é contra dar Bolsa-Família? Com isso
ele produziu um crescimento econômico que permitiu um realinhamento da
economia. Fez uma política "keynesiana". Agora, essa ideia de que Lula
mandava muito não procede. Ele é muito importante? Sim, fez o Brasil
voltar à ideia de que o país pode ter futuro, de país que cresce. Mas do
ponto de vista do sistema político não mudou nada.
Por que o PMDB não consegue ser o síndico?
Quantos votos teve Ulisses Guimarães em 1989, na
eleição presidencial, 4,89%? O PMDB aprendeu a lição. Não pode ser
síndico de seu condomínio. Porque se o síndico for outro e der errado, a
culpa é do síndico. Não é dele. Então essa é a lógica do PMDB: põe a
culpa no síndico. Não é a lógica do PMDB só. É de todos os partidos do
sistema político brasileiro.
O PT é um PMDB?
Não, o PT é um partido diferente. Por isso ele é síndico. O Fernando Henrique estabeleceu dois polos, que são dois síndicos. Na eleição do condomínio você pode escolher entre eles: o do PT ou o do PSDB.
Que são duas alternativas ao pemedebismo...
Alternativas a tomar conta do condomínio pemedebista. O PSB é assim, o PSD do Kassab é assim. Você acha que Aécio é líder da oposição? Aécio não
lidera oposição nenhuma. Ele está esperando que o governo Dilma dê
errado para afirmar que isso é um fracasso, depois de dizer que Lula e
Dilma eram ótimos. Ou seja, é um mero oportunismo eleitoral. Agora qual é
o limite que tem um Estado para fazer o governo Dilma fracassar?
Peguemos a Copa. Em que Estados está havendo maior problema? São Paulo,
Minas... Só que tem limite. Porque os Estados e municípios dependem de
repasses federais.
Não seria um tiro no próprio pé do PSDB, ao arriscar seu governo nesses Estados?
Sim, mas se a Copa não der certo, a culpa é do governo federal, não do estadual. É da Dilma.
A governabilidade da presidente está ameaçada, a crise tende a se aprofundar, com perda de iniciativa de agenda?
A iniciativa de agenda desaparece. Como no governo Lula. Qual foi a iniciativa de agenda dele? Enfrentamento da crise mundial. Foi muito importante, mas foi uma crise mundial! Mas a Dilma pode levar perfeitamente os quatro anos até o final - sendo síndica do pemedebismo.
Ela vai ser a síndica ou ficará à sombra do antecessor?
Acho que a Dilma não vai deixar isso acontecer. Ela deixou claro quando Lula resolveu
ocupar o espaço dela. Você acha que o Lula precisa dizer à presidente o
que ela tem que fazer? Não tem o menor cabimento. Pode existir um
conflito entre os dois? Pode.
Tende a acontecer?
Não tenho a menor ideia. Há aquela lei da política: de criatura e
criador. Mas neste caso há um elemento fundamental que é o PT. Quem vai
segurar para que isso ocorra ou não é o PT.
E a reeleição?
Se a inflação não for colocada sob controle, se as obras de
infraestrutura não forem realizadas para a Copa, e se não tiver uma taxa
mínima de crescimento, está ameaçada a reeleição dela, claramente. A
tarefa dela é muito difícil. Tem a maior base política da história do
Brasil, e a menor margem de manobra. Essa é a situação dela.
E qual a chance de a oposição capitalizar esse momento?
Se Dilma fracassar durante o mandato. Mas capitalizar o Palocci é difícil porque o PSDB está pedindo desculpas por criticá-lo. Não tem oposição!
Há suspeitas de que a divulgação das denúncias teria sido fogo amigo e partido do próprio PT.
Tem, com certeza. Porque, por paradoxal que pareça, o Palocci é o representante do Lula no governo Dilma.
E não tem ninguém com quem o PT tenha tido mais divergência do que com o
próprio Lula. Claro, essas divergências ficaram todas debaixo do tapete
e estavam esmagadas por 80% de popularidade. Mas houve divergências
sérias. O PT sentia que não tinha mais a liderança do governo Lula. O Palocci
é a continuidade dessa lógica. Num certo sentido, tem fogo amigo sim.
Mas tem fogo amigo para todo lado. O PSDB está em guerra. O PT está em
guerra. O líder do partido está em guerra aberta com o líder do governo
na Câmara. O PMDB está unido, mas apenas momentaneamente, como
estratégia.
O PMDB também não sofre uma influência do PT, ao se tornar
cada vez mais coeso e disciplinado, como já havia chamado a atenção na
votação do mínimo?
Não, acho que quem dá lições sempre é o PMDB. O PMDB diz para onde o sistema está indo.
Já que o Lula, com toda a sua popularidade, e a Dilma, agora,
no seu estilo linha-dura, não conseguiram dobrar o pemedebismo, quem
seria capaz?
Mas é a sociedade que tem que exigir. Você só ouve argumento
realista. Mas eu digo que, se continuar assim, trava. Tende à paralisia e
daí o que vai acontecer é uma crise muito maior. O governo Lula teve um
efeito extraordinário de inclusão. Mas essas pessoas ainda não falaram!
A gente ainda não viu o que vai ser o efeito dessas pessoas que têm
acesso a internet, jornal, revista, informação política. Tem efeitos
dessas mudanças da estratificação social que a gente não conhece.
Qual é a causa desse sistema pemedebista?
É uma cultura política, que vem de muito longe, que se explica pela
nossa história ditatorial recente, é importante dizer isso. Os avanços
feitos nos últimos 17 anos ocorreram apesar desse sistema político.
O pemedebismo é favorecido pelo sistema eleitoral
proporcional, que torna o sistema fragmentado? Qual seria o seu modelo
preferido, um sistema com apenas dois ou três partidos?
O número não importa. Quem é que faz uma reforma política - que na
verdade é uma reforma eleitoral? O próprio sistema político. O problema
não é da regra enquanto tal. Os protestos na Espanha e os da Primavera
Árabe têm suas razões completamente diferentes. Mas o que o sistema
político está achando é que enquanto o país estiver crescendo ninguém
vai reclamar. E isso é uma loucura, as pessoas vão reclamar.
Quais os principais problemas que precisam ser atacados?
Primeiro, destravar o debate público. No Brasil, se uma questão é
colocada imediatamente o problema é: a favor ou contra o governo? E não
pode se resumir a isso.
A existência de uma oposição mais forte não levaria
justamente ao não debate e à estratégia de ser "do contra", como ocorria
com o PT - por sinal papel típico de quem está na oposição?
Não aconteceu isso com o PT, não. Não foi assim. Quer dizer, em alguns casos, como no primeiro mandato do Fernando Henrique, pode ter sido. Mas o PT aprendeu a ser oposição, durante o governo Fernando Henrique. Pegue o caso Telebrás. Ia ter a privatização da Telebrás e o que o PT fez? Apresentou um projeto alternativo de privatização. |