sábado, 6 de novembro de 2010

Centrais sindicais criam rede de comunicação na AL



A Confederação Sindical de Trabalhadores/as das Américas (CSA) decidiu criar uma rede sindical de informação no continente para fortalecer a luta pela democratização dos meios de comunicação. Conferência realizada em Montevidéu reuniu entidades sindicais e movimentos sociais de mais de 20 países latinoamericanos para discutir a situação da comunicação no continente. Manipulação midiática da suposta agressão do candidato José Serra por uma bolinha de papel e postura racista contra o presidente boliviano Evo Morales foram citados como exemplos de que "as frentes de guerra número um, dois e três estão nos meios de comunicação e no controle da opinião pública, nas palavras do jornalista basco Unai Aranzadi.

“As frentes de guerra número um, dois e três estão nos meios de comunicação e no controle da opinião pública”. As palavras do jornalista basco Unai Aranzadi, transmitidas em vídeo aos participantes da Conferência Sindical sobre Democratização da Comunicação, definiram as discussões do encontro realizado em Montevidéu nos dias 1° e 2 de novembro. Segundo Aranzadi, os grandes meios seguem alguns “padrões de manipulação e de silêncio impostos pelos conglomerados privados” para prostituir a informação em troca da liberdade de empresa e do discurso único do “partido do capital”.

Promovida pela Confederação Sindical de Trabalhadores/as das Américas (http://www.csa-csi.org), com a participação de centrais sindicais, organizações sociais e especialistas de mais de 20 países latino-americanos, a Conferência destacou a necessidade de mais protagonismo dos trabalhadores na luta pela liberdade de expressão – considerada um “valor indispensável para a construção de uma sociedade mais justa”.

A atuação dos meios de comunicação de massa foi condenada pelos participantes enquanto se repetiam as denúncias de desrespeito, por parte de quem faz uso indevido de concessões públicas, das mais elementares normas de disputa democrática. Foram mencionados desde o recente caso brasileiro – onde o candidato da oposição à presidência, José Serra, foi supostamente “agredido” por uma bolinha de papel – até o racismo contra o presidente boliviano Evo Morales e as críticas a presidente Cristina Fernández, que aprovou uma lei para disciplinar os abusos dos meios de comunicação na Argentina.

O secretário geral da CSA, Víctor Báez, mencionou exemplos concretos da necessidade de construir um poder em rede para contrapor as mentiras difundidas contra a soberania e a liberdade dos povos. Víctor falou do caso dos mineiros chilenos. Os 33 mineiros estiveram 70 dias debaixo da terra, com os meios de comunicação privados falando muito mais da ação de resgate e ocultando as verdadeiras causas do desastre: a falta de investimentos em segurança por parte da empresa, a ausência de fiscalização por parte do governo. Por força da mobilização popular, o governo teve que fechar minhas privadas que se encontravam nas mesmas condições.

“O movimento sindical chileno falou das causas do acidente, mas a denúncia acabou isolada e a verdadeira notícia não foi difundida porque não havia uma rede articulada para fazer isso”, avaliou Báez. “O desmoronamento na mina de San José nos lembrou do fato ocorrido no México, em Pasta de Conchos, onde muitos trabalhadores ficaram enterrados a 100 metros de profundidade, sem qualquer auxílio. E o dirigente sindical que denunciou o acidente teve que se exilar no Canadá”.

Imposição de um modelo
Rosane Bertotti, secretária nacional de Comunicação da Central Única de Trabalhadores (CUT), do Brasil, destacou a necessidade política e ideológica de se construir um novo marco para regular o setor. Na conferência de Montevidéu, Rosane disse que algumas das medidas a serem tomadas foram debatidas democraticamente pela sociedade brasileira e aprovadas na Conferência Nacional de Comunicação, devendo agora serem materializadas na Consolidação das Leis Sociais do país.

“A democratização da comunicação é um passo essencial para o aprofundamento da democracia e é um elemento fundamental para a valorização dos seres humanos. Com sua concepção neoliberal de Estado mínimo, os privatistas tentaram nos impor seus contra-valores, confundindo liberdade de imprensa com liberdade de empresa”, acrescentou Rosane. Como contrapartida ao cenário hegemônico dos grandes meios de comunicação no Brasil, a secretária da CUT apontou que a central sindical investiu na estruturação de seus próprios canais de TV e rádio que começaram a transmitir sua programação recentemente.

Como lembrou o uruguaio Aram Aharonian, fundador da Telesur e dirigente do Observatório Comunicação e Democracia, da Venezuela, é fundamental que o movimento sindical se articule com os movimentos sociais para a disputa de projetos na arena midiática. “Três décadas atrás, para impor-se um modelo político-econômico tínhamos que recorrer às armas, com um saldo de milhares de mortos, desaparecidos e torturados. Hoje, os meios de comunicação de massa levam o bombardeio da mensagem hegemônica diretamente à sala de nossas casas, 24 horas por dia”.

A criação de uma rede de comunicação sindical
Segundo o pensamento de Aharonian, “atualmente são as grandes corporações que manejam o latifúndio midiático, que criam imaginários coletivos virtuais e decidem quem tem a palavra, quem é o protagonista e o antagonista, enquanto trabalham para que as grandes maiorias sigam mudas e invisíveis”. Para combater esta “verdadeira ditadura midiática”, defendeu o jornalista, é preciso “reivindicar e transformar em realidade o sentido etimológico da comunicação, que implica diálogo, interação e intercâmbio para construir consensos entre as partes envolvidas no processo”. Aharonian destacou a importância da proposta da CSA para estruturar redes para construir um movimento contra-hegemônico com vistas a incentivar ações espalhadas no continente, tornando-as muito mais fortes e eficientes.

Gustavo Gómez Germano, diretor nacional de telecomunicações do Uruguai, ressaltou que, na América latina, por muitas razões, está se produzindo um processo de revisão das leis sobre os meios de comunicação, em especial os eletrônicos, com o rádio e TV. “Na verdade, trata-se de um processo de re-regulação, porque a regulação anterior habilitava e fomentava a concentração dos meios de comunicação nas mãos de uns poucos, ao mesmo tempo em que obstaculizava o acesso às grandes maiorias”.

De acordo com Gómez, os Estados devem revisar e reformar suas legislações e realizar controles adequados para reverter e impedir a formação de monopólios e oligopólios no controle dos meios de comunicação. “Se o Estado não desempenha um papel ativo, a democratização não será possível, o livre jogo da oferta e da demanda não diminuirá os abismos existentes em nossas sociedades”, acrescentou.

Novo internacionalismo
Álvaro Padrón, da Fundação Friedrich Ebert, entidade que apoiou a Conferência de Montevidéu, disse que o momento é de um “novo internacionalismo, com nova base pragmática, mais unidade e mais pluralidade”. Segundo Padrón, questões que eram marginais agora ganham mais transcendência no embate de idéias, pondo em questão a concentração dos meios. A conformação de uma rede de comunicação sindical, acrescentou, é uma tarefa urgente para colocar as entidades em uma nova posição de ação democratizadora. Assim, será possível virar a página do neoliberalismo que ainda asfixia muitos Estados nacionais.
Omar Rincón, também da Fundação Friedrich Ebert, acredita que estamos assistindo a “uma batalha inédita pelo relato do país e pela hegemonia política, onde os meios privados criaram sua própria realidade, que representa os donos desses meios que expressam pouca transparência informativa e econômica”.

O representante do Coletivo Intervozes, do Brasil, Pedro Eckman, resgatou a trajetória de luta dos movimentos sociais pela liberdade de expressão e demonstrou como os interesses dos grandes barões da comunicação e da livre empresa entraram em contradição frente aos direitos comunicacionais. Eckman defendeu a necessidade de mais articulação com o conjunto dos movimentos sociais para que caminhem juntos na consolidação das redes contra-hegemônicas. E explicou que “não é necessário reinventar a roída, uma vez que já há muita experiência acumulada. Basta fortalecer as alianças”.

A Agência Latinoamericana de Informação (ALAI) esteve representada na Conferência de Montevidéu por Osvaldo León, para quem o momento favorece uma campanha sincronizada pela democratização da comunicação. “Nunca esteve tão claro o papel danoso dos grandes oligopólios midiáticos, que encarnam uma agressão ao verdadeiro papel e à responsabilidade dos meios de comunicação. Pluralidade e diversidade não entram nestes meios que aí estão. Por isso, nós defendemos a necessidade de investir e contar com instrumentos próprios. Se não dizemos nossa própria palavra, os outros vão dizê-la por nós”.

Ler aqui a declaração final do encontro

Tradução: Katarina Peixoto

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Declaração Final do III Encontro Civilização ou Barbárie

Publicamos hoje a Declaração Final do III Encontro Civilização ou Barbárie, aprovada por unanimidade e aclamação. Encerrado o Encontro, o plenário cantou a Internacional, cada um na sua própria língua.

Editores de Odiario.info
 

Reunidos na cidade portuguesa de Serpa, os participantes no III Encontro Internacional Civilização ou Barbárie – Desafios do Mundo Contemporâneo:
Lançam um alerta para o agravamento da crise global do sistema capitalista.
• Constatam que pela evolução dessa crise – financeira, económica, social, militar, energética, cultural, ambiental e política - o capitalismo, na sua escalada de agressividade, se tornou um factor de regressão absoluta da civilização, ameaçando a própria continuidade da vida na Terra.
• Sublinham que os EUA, núcleo do sistema capitalista, optaram por uma estratégia de terrorismo de Estado que assume matizes genocidas nas suas guerras asiáticas.
• Identificam na União Europeia um bloco politico-económico-militar ao serviço do capital monopolista, empenhado em impor, através do chamado Tratado Constitucional, um reforço da integração capitalista, aprofundando o seu carácter federalista, neoliberal e militarista.
• Saúdam a resistência dos povos europeus à ofensiva em curso contra os seus direitos e garantias, contra as soberanias nacionais e a democracia, ofensiva que promove o desemprego e a pauperização, favorece o grande capital, e suprime direitos laborais e sociais, sobretudo nos sectores da Saúde, da Educação, da Segurança Social, destruindo conquistas históricas dos trabalhadores e atingindo com particular violência as mulheres trabalhadoras. As gigantescas manifestações de protesto em França, em Espanha, Itália, Portugal e sobretudo na Grécia confirmam que a radicalização da luta de massas como resposta à violência do sistema se amplia a nível continental.
• Condenam as guerras imperiais que atingem os povos do Iraque e do Afeganistão, agredidos e ocupados, e os monstruosos crimes ali cometidos pelas forças armadas dos EUA e da NATO, com a aprovação e cumplicidade do Governo português; denunciam como farsa os calendários de retirada das tropas invasoras; advertem que autênticos exércitos de mercenários se comportam na Região como hordas fascistas; e saúdam a resistência dos povos iraquiano e afegão em luta pela liberdade e independência.
• Manifestam a sua solidariedade com o povo mártir da Palestina e o povo do Líbano no seu combate heróico contra o sionismo neofascista. Denunciam o Tribunal Especial das Nações Unidas sobre o Líbano como mero serventuário dos EUA e de Israel. Denunciam a hipocrisia da falsa política de paz do governo Obama, aliado incondicional do sionismo e do Estado terrorista de Israel.
• Advertem contra o perigo de uma agressão iminente dos EUA e de Israel ao povo do Irão - agressão que poderia ser o prólogo da III Guerra Mundial - e denunciam a campanha de desinformação montada para deformar a imagem daquela nação que foi berço de grandes civilizações.
• Alertam para a política de cerco militar e de guerra fria que os EUA conduzem contra a República Popular da China.
• Condenam as intervenções militares directas e indirectas do imperialismo estado-unidense na América Latina; denunciam o regresso da IV Frota da US Navy a águas sul-americanas e a instalação de 7 novas bases norte-americanas na Colômbia e reclamam o encerramento de todas as existentes no Continente, incluindo a de Guantanamo, ocupada ilegalmente em Cuba.
• Denunciam a participação do governo dos EUA, através da CIA e do Pentágono, no golpe de estado nas Honduras e na fracassada intentona no Equador e saúdam as conquistas democráticas e as medidas anti-imperialistas alcançadas pelos governos progressistas de Evo Morales na Bolívia e de Rafael Correa no Equador.
• Saúdam a luta, corajosa e difícil, de uma percentagem crescente de cidadãos norteamericanos contra as engrenagens de um sistema de poder cuja ambição e irracionalidade configuram ameaça à humanidade e sublinham que as esperanças suscitadas pela eleição de Barack Obama se desvanecem à medida que se torna evidente que o novo presidente dá no fundamental continuidade à política externa de George Bush – agravando-a mesmo, como sucede no Afeganistão e na América Latina - e, no plano interno, actua como aliado do capital contra os trabalhadores.
• Saúdam calorosamente o povo da Venezuela pelos avanços realizados no desenvolvimento da Revolução Bolivariana, pela firmeza perante o imperialismo estado-unidense e na defesa do projecto de construção de uma sociedade socialista.
• Reclamam o fim do bloqueio imposto a Cuba pelos EUA e da “Posição Comum da UE”, ambos instrumentos do imperialismo. Sublinham que a sua revolução socialista e a heróica resistência do seu povo a meio século de guerra não declarada foi factor decisivo para o fortalecimento em todo o continente da resistência ao imperialismo norte-americano. Sem essa resistência e exemplo, os avanços revolucionários registados na Venezuela não teriam sido possíveis, nem a emergência de governos progressistas noutros países.
• Saúdam as primeiras manifestações da classe operária e dos trabalhadores da Rússia contra a exploração desencadeada pela restauração capitalista em curso nesse país.
• Saúdam a campanha internacional “Gaza Livre” pelo levantamento do criminoso bloqueio a Gaza.
• Condenam os crimes cometidos pelo governo de Uribe Velez na Colômbia nos quais desempenhou importante papel o actual presidente Juan Manuel Santos e lembram que a solidariedade da União Europeia com o regime neofascista colombiano dificulta a solução negociada para o conflito existente naquele pais pela qual o seu povo tem corajosamente lutado. Exprimem a sua solidariedade com a Senadora Piedad Córdoba e as vítimas do terrorismo de Estado.
• Constatam que o crescimento económico capitalista, baseado no aumento do consumo, mobiliza fluxos colossais de materiais e de energia, causando a degradação e a exaustão de recursos naturais finitos – nomeadamente o petróleo que neste momento está atingindo o nível máximo de produção possível - ameaçando os processos de renovação natural. Ao invés do bem-estar das populações, o crescimento económico capitalista desfigura assim a relação harmoniosa do Homem com a Terra que habita e que é património comum da humanidade, destruindo o ambiente necessário à vida e os recursos indispensáveis à produção de bens essenciais.
• Alertam para a necessidade imperiosa do combate à alienação de grande parte da humanidade, envenenada pelo massacre mediático de uma comunicação social - controlada pelo imperialismo – que desinforma e manipula, disseminando a mentira e ocultando a realidade em escala mundial.
• Apelam ao reforço da defesa da diversidade cultural e da resistência cultural e linguística, contra a hegemonização e a colonização do espaço mediático, comercial, cultural, científico pela expressão anglo-saxónica, enquanto “língua de trabalho” do imperialismo.
• Proclamam a convicção de que o marxismo - e em particular o seu núcleo fundador assente na obra de Marx e Engels - continua a ocupar um lugar central entre as referências teóricas mobilizadas não somente pelos comunistas mas também pelos progressistas do mundo. A reapropriação e o reforço do marxismo, da sua metodologia e dos seus conceitos, como pensamento da crítica e da transformação do mundo, nem dogmático nem domesticado, e a herança do marxismo-leninismo, continuam a ser uma necessidade absoluta da luta ideológica e na justa definição da estratégia e da táctica das forças que se empenhem no combate anti-capitalista e anti-imperialista. Contra o sistema totalitário de desinformação, de alienação e de manipulação das massas e os doutrinadores do «pensamento único», o marxismo-leninismo permanece como a arma intelectual mais preciosa nas mãos dos trabalhadores e dos povos que resistem. Renunciar a ele equivaleria a desistir da luta pelo socialismo.
• Denunciam o carácter profundamente reaccionário das campanhas de criminalização do comunismo, recordam as consequências trágicas do desaparecimento da União Soviética e expressam a convicção de que o socialismo é a única alternativa ao sistema capitalista que, ao entrar na fase senil, optou por uma estratégia de desespero e exterminista, que ameaça conduzir a humanidade à barbárie.
• Registam o significado das comemorações do I Centenário da Republica Portuguesa, sublinhando a importância decisiva da participação do povo na revolução do 5 de Outubro de 1910 e nas suas conquistas políticas.
• Constatam com alegria e esperança a intensificação das lutas dos trabalhadores em escala mundial, bem como a resistência às guerras de agressão, designadamente nos EUA, centro do sistema de dominação, e sublinham que o reforço da solidariedade internacionalista entre os explorados e os excluídos de todo o mundo é imprescindível à globalização do combate contra o inimigo comum: o capitalismo e o imperialismo.

Resposta a Frei Betto: Especialmente os ateus


* Daniel Sottomaior no Sul21

Em recente artigo publicado no Sul21, Frei Betto defendeu a posição de que os torturadores “praticavam o ateísmo militante ao profanar com violência os templos vivos de Deus: as vítimas levadas ao pau de arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à morte… Ateísmo militante é, pois, profanar o templo vivo de Deus: o ser humano.” Não se trata de afirmação impensada, uma vez que repete artigo anterior, e foi confirmada em entrevista nos seguintes termos: “Toda vez que alguém viola o ser humano, violenta, oprime, está realizando o ateísmo militante.”
O texto gerou muitos protestos de ateus, que ficaram ainda mais indignados com a repetição do insulto, pronunciada com toda indiferença e sem qualquer tentativa de desculpa. Infelizmente, parece ser necessário afirmar e repetir com toda clareza aquilo que deveria ser óbvio: ver-se igualado a torturadores e a atos de tortura é um ultraje à dignidade de qualquer indivíduo, ateu ou não. Nenhum tipo de racionalização justifica essa associação.
É fundamental lembrar que o ateísmo repousa no campo das ideias: ele nada mais é do que a ausência de crença em deuses. Não haveria nada de errado em criticá-lo, pelo mesmo motivo que não há nada de errado em criticar o liberalismo ou o socialismo.
No entanto, as afirmações de Betto são de outra ordem, pois se referem a pessoas. Militante é o indivíduo que milita ou atua em alguma causa. Assim, todos os falantes da língua portuguesa, inclusive o frei, entendem que ateísmo militante é a ação de quem promove o ateísmo. Nenhuma idiossincrasia de Betto mudará o significado direto que o resto dos mortais tem dessa expressão. Sua ofensa está em propor que violência para com o outro significa ateísmo militante, implicando entre outras coisas que torturadores são ateus. Isso é inaceitável.
O raciocínio do religioso não resiste ao mais óbvio exame. Pode-se virá-lo de ponta-cabeça afirmando que todo indivíduo é um templo do humanismo secular, e que portanto os torturadores na verdade praticam religiosidade militante. Mais importante ainda é o fato de que rebatizar à plena força expressões já existentes para lhes dar significado espúrio e negativo é um inegável sintoma de preconceito.
Atenção: propostas repulsivas à frente. Seria aceitável renomear um vaso sanitário como “negro militante” e prosseguir com todas as frases que isso acarretaria? Sob que pretextos aceitaríamos que se chamasse o tráfico de drogas de “prática do judaísmo”? A justificativa para esse estupro semântico é indiferente. O que importa é que ele revela uma desinibida sanha para identificar o outro com o mal. Que nome se dá a essa abjeta inclinação?
Só para quem que vê a bondade identificada com a pele branca, e a maldade associada à negra, faz sentido dizer que brancos maus têm alma negra, ou o oposto: negro de alma branca é bom. Em seu texto, Frei Betto não hesita em fazer a mesmíssima coisa, imaginando que até inquisidores e pedófilos da Igreja Católica praticam ateísmo militante(!), a despeito de seu óbvio catolicismo: são os brancos de alma negra. Quando afirma “quem ama o próximo ama a Deus ainda que não creia”, são os negros de alma branca: ateus bons de coração em verdade são como crentes. Ora, se não é lícito identificar maldade com judaísmo, cristianismo, negritude ou qualquer outra posição, militante ou não, então o mesmo vale para o ateísmo.
Também não há como engolir a insistente alegação de Betto de que sua acusação pesa apenas sobre a militância, não sobre o ateísmo em si. Um dos motivos é o fato de que a versão expandida de seu texto original, amplamente reproduzida online, afirma com todas as letras: “raros os presos políticos que professavam convictamente o ateísmo. Nossos torturadores, sim, o faziam escancaradamente ao profanarem, com toda violência, os templos vivos de Deus”. Fazendo a análise sintática, tem-se a seguinte oração equivalente: nossos torturadores professavam convictamente o ateísmo de forma escancarada.
Betto está obviamente preocupado em defender o respeito a ideias, proposta que repete várias vezes, o que lamentamos profundamente. Ideias não têm direitos nem dignidade: seres humanos têm. Ideias e crenças não precisam ser protegidas nem respeitadas. Seres humanos precisam. Essa parece ser a grande diferença moral entre ateus e religiosos: para nós só há imoralidade quando se causa sofrimento àqueles que podem senti-lo. As ideias que se virem. Para Betto e a maior parte dos religiosos, as ideias têm direito de não serem criticadas, mesmo quando falsas. Os humanos que se virem.
Especialmente os ateus.

* Presidente da ATEA – Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos

Uma mulher na presidência

Elaine Tavares

Sempre admirei as mulheres valentes e ainda me arrepio ao lembrar Micaela Bastidas, vendo seus filhos e seu marido serem esquartejados, impávida, sabendo que havia feito a coisa certa: lutar pela liberdade, contra o colonialismo, pela sua terra e pelo direito de ser quem era. Encanta-me a história de Juana Azurduy, espada em punho, lutando pela libertação desta “nuestra América”, encurralada, com seus filhos nos braços, sem nenhuma vacilação. Ou ainda Bartolina Sisa, comandando as tropas aymaras no cerco a La Paz, poderosa como uma deusa, a alertar para o perigo da conciliação de classe. E Manuelita Saenz que, desde seu profundo amor por Bolívar, se fez generala, defendendo a liberdade assim como defendia seu homem, adaga na mão, lutando contra os assassinos. Ou Anita Garibaldi, que enfrentou o olhar de reprovação dos seus e partiu, montada em seu cavalo, com seu amor, empunhando a espada na luta pela liberdade. Ah, essas mulheres...
 
Poderia ainda citar outras tantas que, nestas terras de Abya Yala, mostraram seu valor, entregando a vida para construir um mundo novo, que garantisse a liberdade e a soberania popular. Mulheres guerreiras que simplesmente foram à luta sem reivindicar diferença de gênero, porque o que estava em jogo era o futuro das gentes e isso era tudo o que importava. E foi porque me criei ouvindo estas histórias que nunca fui muito afeita a esse debate feminista. Desde pequena, nas planuras da fronteira, as mulheres da minha vida, poderosas, estavam muito mais para Ana Terra que para Bibiana.  Sempre prenhas de minuano e horizontes, as mulheres da minha infância empunhavam armas, corcoveavam nos cavalos bravios, banhavam-se nuas nas sangas, dormiam com seus homens na campina, disputavam carreira, queda de braço, tomavam caçacha e ainda lavavam roupa e faziam comida, com o palheiro acesso entre os lábios e aquele olhar de picardia.
 
Digo isso para alertar sobre o fato de que termos agora a primeira mulher presidente não quer dizer muita coisa. Porque antes de tudo é preciso saber: que projeto de país tem essa mulher? Que propostas têm para a educação, a saúde? Que modelo econômico vai defender? Com que valentia vai enfrentar a oligarquia agrária? Como vai enfrentar o tema dos povos originários? Até onde vai ceder diante da pressão das transnacionais? O quanto vai efetivamente tornar real o serviço público capaz de atender as demandas concretas da população? Assim, o fato de ser mulher não a torna especial. O que a fará única e “imorrível” é o caminho que vai trilhar. Basta lembrar Margareth Tatcher, a dama de ferro, mulher. E aí? Qual o seu legado para a Inglaterra? Para quem governou? Quem não se lembra da lenta e cruel destruição da categoria dos mineiros?
 
Dilma Russef tem uma linda história. É, sem dúvida, uma guerreira. Passou pela luta contra a ditadura, foi presa, torturada e tudo o mais do pacote básico das violentas ditaduras desta nossa América.  Sobreviveu não só no que diz respeito à vida mesma, mas também na capacidade de superar e constituir uma bonita carreira profissional e política. Mas, no governo de Luis Inácio, foi “a mãe” do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que, muitas vezes, mal planejado e eleitoreiro, não cumpriu com a sua promessa de melhorar a vida das gentes. Um exemplo da minha aldeia: aqui, no bairro Campeche, o PAC financiou a construção de uma rede coletora de esgoto. Isso é bom. Mas a proposta que tem para o destino final é a construção de um emissário que leve os dejetos todos para o mar, poluindo e destruindo a natureza. Que crescimento isso acelerou? Também foi ela quem ajudou a derrubar os “entraves ambientais” para a construção de grandes usinas, comprovadamente nocivas ao meio ambiente e as gentes. Isso foi ruim, muito ruim. Que o digam as gentes ribeirinhas e os povos indígenas.
 
Agora ela aí está. Competente, séria, dedicada, criatura do Lula, a quem agradeceu emocionada no seu discurso de posse. “Sou uma mulher de esquerda”, declarou em uma entrevista. “Vou governar para todos”, insistiu na sua fala à nação pouco depois de eleita, e deu bastante ênfase a idéia de desenvolvimento, fazendo crer que o Brasil pode entrar para o seleto clube dos países centrais. Mas, é isso que se quer? Ser “desenvolvido” como a Inglaterra, os Estados Unidos, a França? Ser predador, explorador, imperialista? Há que ver qual é a estação final a qual Dilma quer chegar.
 
Os oito anos de Luis Inácio foram anos de bonança para a elite nacional. Nunca os ricos ganharam tanto, nunca os bancos ganharam tanto, nunca os latifundiários ganharam tanto. O próprio Luis Inácio admitiu isso em um de seus discursos. É fato que os pobres tiveram um quinhão do bolo, mas, vamos combinar, um pequeno quinhão. O bolsa família deu sobrevida a uma gente que definhava, mais ainda não lhes apontou o caminho da libertação. Criaram-se 14 novas universidades, que ainda patinam na qualidade. Com o Reuni, deu-se muita grana para as escolas privadas, embora isso garantisse vaga para alunos carentes. Então, não dá para negar que houve alguns avanços, mas sempre se reivindicou que era preciso mais. Muito mais.
 
Hoje, na senda neodesenvolvimentista apregoada por Dilma, estão encerradas as promessas de crescimento econômico e social, o que parece coisa boa. Mas, talvez falte ao governo explicar a custa do quê isso pode acontecer. Se antes o chamado desenvolvimento estava bloqueado pela dívida externa, hoje, sendo o Brasil periferia e dependente, esse tal desenvolvimento só pode chegar com o sacrifício da maioria, os mais pobres. E sempre tem sido assim.  Desenvolvem-se os mais ricos, recorrentemente.
 
 Dilma falou em diminuir a diferença entre os mais ricos e os mais pobres, em acabar com a miséria, com a cracolândia, com o atraso. Promessas grandiosas que serão cobradas. Mas, na queda de braço com a elite nacional é que se poderá ver até onde vai a posição de esquerda da nova presidente. Existe aí um grande desafio que não será vencido sem uma mudança radical na proposta de organização da vida. O desenvolvimento sonhado não pode ser o mesmo dos países centrais. Há que se avançar para uma proposta nacional popular, capaz de realmente garantir a participação popular efetiva e protagônica. Sem a soberania do povo os avanços serão pífios.
 
Enfim, aí está a nova presidenta, uma mulher que “sim, pode”. Mas, feminina ou não, sua proposta de governo estará sob as luzes, e a nós cabe acompanhar. Sabemos que na composição PT/PMDB não deve haver espaço para o avanço no rumo do socialismo. O que se pode esperar são algumas reformas, e muitas delas serão contra as gentes, como a anunciada nova reforma da previdência, cuja versão européia está levando milhões às ruas no velho continente. Isso significa que não há tempo para esmorecer na luta por outra forma de viver. A luta das gentes segue e seguirá até que se construa, coletiva e conscientemente, a nova sociedade.     

- Elaine Tavares – jornalista brasileira
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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Apropriação indébita: como os ricos estão tomando nossa herança comum


Hoje 95% do milho plantado nos EUA é de uma única variedade, com desaparecimento da diversidade genética. O livre acesso às composições de Heitor Villalobos será a partir de 2034. Isto está ajudando a criatividade de quem? Patentes de 20 anos há meio século atrás podiam parecer razoáveis, mas com o ritmo de inovação atual, que sentido fazem? Já são 25 milhões de pessoas que morreram de Aids, e as empresas farmacêuticas proibem os países afetados de produzir o coquetel. Há um imenso enriquecimento no topo da pirâmide, baseado não no que estas pessoas aportaram, mas no fato de se apropriarem de um acúmulo historicamente construído durante sucessivas gerações. O artigo é de Ladislau Dowbor.

Gar Alperovitz and Lew Daly – Apropriação Indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum – Editora Senac, São Paulo 2010, 242 p.

A concentração de renda e a destruição ambiental constinuam sendo os nosso grandes desafios. São facetas diferentes da mesma dinâmica: na prática, estamos destruindo o planeta para a satisfação consumista de uma minoria, e deixando de atender os problemas realmente centrais. Como explicar que, com tantas tecnologias, produtividade e modernidade, estejamos reproduzindo o atraso? Em particular, como a sociedade do conhecimento pode se transformar em vetor de desigualdade?

O prêmio Nobel Kenneth Arrow considera que os autores de “Apropriação indébita: como os ricos etão tomando a nossa herança comum”, Gar Alperovitz e Lew Daly, “se baseiam em fontes impecáveis e as usam com maestria. Todo mundo irá aprender ao ler este livro”. Eu, que não sou nenhum prêmio Nobel, venho aqui contribuir com a minha modesta recomendação, transformando o meu prefácio em instrumento de divulgação. Mania de professor, querer comunicar o entusiasmo de boas leituras. E recomendação a não economistas: os autores deste livro têm suficiente inteligência para não precisar se esconder atrás de equações. A leitura flui.

A quem vai o fruto do nosso trabalho, e em que proporções? É a eterna questão do controle dos nossos processos produtivos. Na era da economia rural, os ricos se apropriavam do fruto do trabalho social, por serem donos da terra. Na era industrial, por serem donos da fábrica. E na era da economia do conhecimento, a propriedade intelectual se apresenta como a grande avenida de acesso a uma posição privilegiada na sociedade. Mas para isso, é preciso restringir o acesso generalizado ao conhecimento, pois se todos tiverem acesso, como se cobrará o pedágio, como se assegurará a vantagem de minorias?

Um argumento chave desta discussão, é naturalmente a legitimidade da posse. De quem é a terra, que permitia as fortunas e o lazer agradável dos senhores feudais? Apropriação na base da força, sem dúvida, legitimada em seguida por uma estrutura de heranças familiares. Uma vez aceito, o sistema funciona, pois na parte de cima da sociedade forma-se uma aliança natural ditada por interesses comuns.

Na fase industrial, um empresário pega um empréstimo no banco – e para isso ele já deve pertencer a um grupo social privilegiado – e monta uma empresa. Da venda dos produtos, e pagando baixos salários, tanto auferirá lucros pessoal como restituirá o empréstimo ao banco. De onde o banco tirou o dinheiro? Da poupança social, sob forma de depósitos, poupança esta que será transformada na fábrica do empresário. Aqui também, vale a solidariedade dos proprietários de meios de produção, e o resultado de um esforço que é social será em boa parte apropriado por uma minoria.

Mudam os sistemas, evoluem as tecnologias, mas não muda o esquema. Na fase atual, da economia do conhecimento, coloca-se o espinhoso problema da legitimidade da posse do conhecimento. A mudança é radical, relativamente aos sistemas anteriores: a terra pertence a um ou a outro, as máquinas têm proprietário, são bens “rivais”. No caso do conhecimento, trata-se de um bem cujo consumo não reduz o estoque. Se transmitimos o conhecimento a alguém, continuamos com ele, não perdemos nada, e como o conhecimento transmitido gera novos conhecimentos, todos ganham. A tendência para a livre circulação do conhecimento para o bem de todos torna-se portanto poderosa.

A apropriação privada de um produto social deve ser justificada. O aporte principal de Alperovitz e de Daly, neste pequeno estudo, é de deixar claro o mecanismo de uma apropriação injusta – Unjust Deserts – que poderíamos explicitar com a expressão mais corrente de apropriação indébita. Ao tornar transparentes estes mecanismos, os autores na realidade estão elaborando uma teoria do valor da economia do conhecimento. A força explicativa do que acontece na sociedade moderna, com isto, torna-se poderosa.

Para dar um exemplo trazido pelo autor, quando a Monsanto adquire controle exclusivo sobre determinada semente, como se a inovação tecnológica fosse um aporte apenas dela, esquece o processo que sustentou estes avanços. “O que eles nunca levam em consideração, é o imenso investimento coletivo que carregou a ciência genética dos seus primeiros passos até o momento em que a empresa toma a sua decisão. Todo o conhecimento biológico, estatístico e de outras áreas sem o qual nenhuma das sementes altamente produtivas e resistentes a denças poderia ter sido desenvolvida – todas as publicações, pesquisas, educação, treinamento e ferramentas técnicas relacionadas sem os quais a aprendizagem e o conhecimento não poderiam ter sido comunicados e fomentados em cada estágio particular de desenvolvimento, e então passados adiante e incorporados, também, por uma força de trabalho de técnicos e cientistas – tudo isto chega à empresa sem custo, um presente do passado” (55). Ao apropriar-se do direito sobre o produto final, e ao travar desenvolvimentos paralelos, a empresa canaliza para si gigantescos lucros da totalidade do esforço social, que ela não teve de financiar. Trata-se de um pedágio sobre o esforço dos outros. Unjust Deserts.

Se não é legítimo, pelo menos funciona? A compreensão do caráter particular do conhecimento como fator de produção já é antiga. Uma jóia a este respeito é um texto 1813 de Thomas Jefferson:

“Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível que todas as outras de propriedade exclusiva, esta coisa é a ação do poder de pensamento que chamamos de idéia....Que as idéias devam se expandir livremente de uma pessoa para outra, por todo o globo, para a instrução moral e mútua do homem, e o avanço de sua condição, parece ter sido particularmente e benevolmente desenhado pela natureza, quando ela as tornou, como o fogo, passíveis de expansão por todo o espaço, sem reduzir a sua densidade em nenhum ponto, e como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos fisicamente, incapazes de confinamento, ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por natureza, ser objeto de propriedade.” (1)

O conhecimento não constitui uma propriedade no mesmo sentido que a de um bem físico. A caneta é minha, faço dela o que quiser. O conhecimento, na medida em que resulta de um esforço social muito amplo, e constitui um bem não rival, obedece a outra lógica, e por isto não é assegurado em permanência, e sim por vinte anos, por exemplo, no caso das patentes, ou quase um século no caso dos copyrights, mas sempre por tempo limitado: a propriedade é assegurada por sua função social – estimular as pessoas a inventarem ou a escreverem – e não por ser um direito natural.

O merecimento é para todos nós um argumento central. Segundo as palavras dos autores, “nada é mais profundamente ancorado em pessoas comuns do que a idéia de que uma pessoa tem direito ao que criou ou ao que os seus esforços produziram”.(96) Mas na realidade, não são propriamente os criadores que são remunerados, e sim os intermediários jurídicos, financeiros e de comunicação comercial que se apropriam do resultado da criatividade, trancando-o em contratos de exclusividade, e fazem fortunas de merecimento duvidoso. Não é a criatividade que é remunerada, e sim a apropriação dos resultados: “Se muito do que temos nos chegou como um presente gratuito de muitas gerações de contribuiçoes históricas, há uma questão profunda relativamente a quanto uma pessoa possa dizer que “ganhou merecidamente” no processo, agora ou no futuro.”(97)

As pessoas em geral não se dão conta das limitações. Hoje 95% do milho plantado nos EUA é de uma única variedade, com desaparecimento da diversidade genética, e as ameaças para o futuro são imensas. Teremos livre acesso às obras de Paulo Freire apenas a partir de 2050, 90 anos depois da morte do autor. O livre acesso às composições de Heitor Villalobos será a partir de 2034. Isto está ajudando a criatividade de quem? Patentes de 20 anos há meio século atrás podiam parecer razoáveis, mas com o ritmo de inovação atual, que sentido fazem? Já são 25 milhões de pessoas que morreram de Aids, e as empresas farmacêuticas (o Big Pharma) proibem os países afetados de produzir o coquetel, são donas de intermináveis patentes. Ou seja, há um imenso enriquecimento no topo da pirâmide, baseado não no que estas pessoas aportaram, mas no fato de se apropriarem de um acúmulo historicamente construído durante sucessivas gerações.

Nesta era em que a concentração planetária da riqueza social em poucas mãos está se tornando nsustentável, entender o mecanismo de geração e de apropriação desta riqueza é fundamental. Os autores não são nada extermistas, mas defendem que o acesso aos resultados dos esforços produtivos devam ser minimamente proporcionais aos aportes. “A fonte de longe a mais importante da prosperidade moderna é a riqueza social sob forma de conhecimento acumulado e de tecnologia herdada”, o que significa que “uma porção substantiva da presente riqueza e renda deveria ser realocada para todos os membros da sociedade de forma igualitária, ou no mínimo, no sentido de promover maior igualdade”.(153)

Um livro curto, muito bem escrito, e sobretudo uma preciosidade teórica, explicitando de maneira clara a deformação generalizada do mecanismo de remuneração, ou de recompensas, que o nosso sistema econômico gerou. Trata-se aqui de um dos melhores livros de economia que já passaram por minhas mãos. Bem documentado mas sempre claro na exposição, fortemente apoiado em termos teóricos, na realidade o livro abre a porta para o que podemos qualificar de teoria do valor, mas não da produção industrial, e sim da economia do conhecimento, o que Daniel Bell qualificou de “knowledge theory of value”. A Editora Senac tomou uma excelente iniciativa ao traduzir e publicar este livro. Vale a pena. (www.editorasenacsp.com.br)

(1) Citado por Lawrence Lessig, The Future of Ideas: the Fate of the Commons in an Connected World – Random House, New York, 2001, p. 94

(*) Ladislau Dowbor, professor de economia e administração da PUC-SP, é autor de Democracia Econômica e de Da propriedade Intelectual à Sociedade do Conhecimento, disponíveis em http://dowbor.org

“Querem transformar o controle técnico da internet em controle político e cultural”


por Juliana Sada  no blog ESCREVINHADOR

Publicamos hoje a continuação da entrevista com o sociólogo Sergio Amadeu. Nesta segunda parte um dos maiores especialistas em internet no Brasil aponta quais são as grandes ameaças à privacidade e liberdade na rede.
A primeira parte da entrevista sobre o Plano Nacional de Banda Larga intitulada “Jogo complexo: a grande mídia não está sozinha” pode ser lida aqui

Quais são os obstáculos que estão postos e quais iniciativas de cerceamento da liberdade na internet?

Existem governos, como o da China, e grupos de pessoas ou políticos conservadores que querem transformar os protocolos, o controle que é dado tecnicamente na internet em controle político e cultural.
É difícil a gente falar isso: a rede amplia a liberdade de expressão, amplia a capacidade de interação entre as pessoas, ela é uma rede que permite a liberdade nesse sentido. Mas ela é uma rede também de controle. Ela é uma rede cibernética: de comunicação e controle.
Atualmente você pega um grupo como o Google que conseguiu atrair a atenção e interesse das pessoas, que passaram a entregar as suas informações voluntariamente, porque era legal usar o Gmail,o Youtube, o Orkut, as aplicações, o mecanismo de busca…É uma empresa que não obrigou ninguém a passar tanta informação para eles mas eles são um repositório de informações jamais alcançado  por alguém história da humanidade.
Nunca tivemos uma situação onde pudéssemos falar tanto e nunca fomos tão controlados. É uma aparente contradição mas não é. A própria rede para ser dispersa, tem que ser extremamente controlada. Mas na hora que eu transformo esse controle tecnológico, que é tipico da cibernética, em controle  cultural e começo a dizer que deve passar por determinados lugares, que tem que definir o comportamento político cultural das pessoas. Daí eu tenho algo extremamente grave. Então nós estamos com um grande problema hoje. E uma das grandes expressões desse problema de transformação do controle tecnológico em controle político se dá em torno da neutralidade da rede.
Você pode explicar o conceito de neutralidade da rede?
A internet ela pode ser entendida como uma rede lógica, uma rede de informações. Para usarmos a internet, utilizamos a infraestrutura de telecomunicações, ou seja, os controles do que a gente chama de camada física da rede. Essas operadoras de telecom querem controlar o fluxo de informações que passa por seus cabos.
A internet até hoje não funcionou assim porque uma camada era neutra em relação às outras. Daí o termo neutralidade da rede. Ou seja, até hoje não era permitida a discriminação dos pacotes, seja por origem, destino, conteúdo…
Agora essas operadoras dizem “não, nós estamos com um problema: as pessoas tão baixando vídeo e compete com um tráfego importante de dados. Os vídeos tem que pagar para andar na minha rede”. É como se fossem pedágios virtuais nesse sentido. E elas querem assim: se o blog do Sergio Amadeu não tiver acordo com uma operadora americana, não vão abrir o blog com a mesma velocidade do MSN, que tem um acordo.
Então nos vamos implantar estradas pedagiadas, vamos implantar as regras de mercado dentro do ciberespaço. O ciberespaço sempre permitiu ação do mercado mas ele não é o mercado, ele é o espaço comum, onde todos eram tratados de maneira equânime. E as operadoras com essa tentativa de restrição, estão interferindo diretamente no meu interesse, na minha liberdade de me comunicar.
Isso coloca em risco a criatividade da rede. Se eu criar uma nova aplicação, o que vai acontecer? Uma operadora pode dizer “não sei o que é isso, não vou deixar passar”. O Twitter poderia não existir, o Youtube…Pois todo mundo que quiser criar algo vai ter que ser sócio deles, senão não vai poder caminhar nas redes. Isso é uma aberração.
Defender a neutralidade na rede, é defender a liberdade de expressão, de criação, de invenção. E é uma das coisas mais importantes no mundo da internet hoje.
Que iniciativas existem nesse sentido?
Nos EUA, a Justiça deu ganho de causa à empresa Conquest que alegava poder privilegiar determinados pacotes de informação em detrimento a outros em sua rede. E a FCC, a Anatel deles,  está contra essa decisão e tem ações legais no parlamento americano para aprovar projetos que garantam a neutralidade na rede, contra a descriminação dos pacotes.
No Brasil colocamos no Marco Civil da Internet que um dos princípios da internet no Brasil é a neutralidade na rede. Isso colocaria, ao menos no nosso território, uma situação difícil para operadoras que começassem a interferir nos pacotes.  É um movimento no qual a gente tenta aprovar leis em todos os países importantes do mundo pra garantir a neutralidade da rede.
Porque isso não depende de cada país já que o acesso não tem fronteiras, certo?
Essa questão é bem interessante. O que a gente quer fazer em cada país é garantir que a internet continue livre e não fazer uma lei para dizer “meu país é diferente”. Então é um espírito de uma parte da opinião pública mundial que luta por isso. Olha que interessante: a internet é transnacional mas se os EUA aplicarem o processo de quebrar a neutralidade, eles vão impor essa lógica no mundo inteiro pois é la que estão os maiores provedores de conteúdo e as principais redes sociais.
Então, na verdade, temos que lutar com leis contra o poder de oligopólio desse controladores das redes físicas. A rede física é que controla os cabos, satélites, cabos submarinos…Esses caras são oligopólios no mundo, é mais fácil a gente convencer o governo americano a fazer algo do que a convencermos uma operadora dessa. Porque eu não posso eleger-los, eu não posso controlar-los. Eles não se guiam por preceitos democráticos, é a ditadura do capital. Então é muito grave,  daí estranhamente para defender a liberdade transnacional, a gente recorre às leis nacionais.  Dizendo “neste pedaço da terra, o fluxo é livre, naquele também, naquele também” e se esses países forem os mais importantes, a gente venceu a batalha.
E qual o interesse das operadoras em fazer isso? Tem a ver com o interesse da indústria fonográfica em barrar o download de músicas, por exemplo?
O interesse maior é eles ganharem mais dinheiro, é cobrar. E aí tem a indústria do copyright, que pensa “bom, se eles puderem controlar a rede, eu faço um acordo com eles pra não passar protocolo bitorrent pela rede deles e aí eu acabo com a pirataria”. É ilusão dos caras isso. Mas o principal interesse das operadores é aumentar seu controle, eles pegam o controle técnico que tem – os computadores sabem que pacotes estão passando – e aí eles ganham mais dinheiro.
E para ganhar mais dinheiro eles destroem a liberdade de expressão, de criação. Eles passam a ter um controle grande porque se eu inventar a Web 3D, vou ter fazer um acordo com ele porque senão eles podem barrar meu conteúdo. Vamos ter cercas digitais e eles só abrem a porteira mediante pagamento ou acordo. Isso é um controle gigantesco sobre a criatividade.
No mundo, as operadoras estão se concentrando – vão ser de 10 a 12 grandes operadoras, que tem mais poder que  Estados. E é um poder sobre a comunicação e então a gente tem que  superar essa nossa dependência desse tipo de companhia – não sei ainda qual seria a solução mas a situação atual é grave. Essas empresas são estratégicas do ponto de vista do direito a comunicação hoje e elas tem que ter o controle social.
Quem são as grandes empresas de telecom? Quem são esses grupos que controlam o mercado?
Tem algumas empresas grandes dos EUA, a AT&T, Conquest, Verizon…Alguns grupos europeus como a Telefônica, a Vodafone e algumas alemãs. Tem duas grande chinesas, muito grandes. Mas o que está acontecendo é que essas empresas estão se coligando, então o grande perigo é essa enorme concentração. É um setor estratégico, eles tem toda a infra-estrutura da rede. Por exemplo, como é que a China faz: eles não deixam que alguns IPs sejam lidos o fluxo de alta velocidade vem e ao entrar na China, tem um computador que filtra. É o chamado grande firewall chinês, a grande barreira.

É possível haver uma regulação a nível mundial? Alguma instância de decisão?

Não, acima dos Estados Nacionais tem acordos. Seria uma boa ideia a gente tentar fazer um acordo em defesa da liberdade na internet mas é muito difícil. No momento nós temos que ganhar a opinião pública em cada país. Porque aí as sociedades em cada local brigam. Na Espanha tem uma briga forte em defesa da neutralidade da rede. Na França infelizmente a gente perdeu para o Sarkozy, que criou lei absurdas. Mas a gente tem um movimento mundial.
Você pode explicar sobre a lei aprovada na França e que foi debatida no parlamento de vários países europeus?
A grande iniciativa hoje é chamada “three strikes”, são as três batidas. Eles identificam que você está baixando, por exemplo, um arquivo de música. Então ele violam a sua privacidade para ver que tipo de arquivo você está baixando. Se for um arquivo protegido pelo copyright, ou melhor dizendo cerceado pelo copyright, eles te mandam um aviso “você está violando a lei” – é a primeira batida. Se você continuar, eles te mandam um segundo aviso e na terceira vez eles cortam a sua conexão, em geral por um ano.
Qual o problema disso? Pense na minha casa que tem três pessoas usando a internet, só eu baixei a música. Na hora que me desconectam, são prejudicadas outras pessoas que não tem nada a ver com isso. Quer dizer, é uma lei inexequível. Tanto é que na França ela foi aprovada há mais de um ano mas não foi aplicada.
A grande questão em relação ao IP [Internet Protocol, número de identificação de um computador na rede] é a seguinte: para você navegar na internet você tem que ter um número de IP, então é muito fácil identificar o IP, a máquina e a região em que está. O grande problema é você individualizar o IP, ou seja, vincular um IP a uma identidade civil. Daí toda aquela navegação, tudo o que aquele IP fez pode ser rastreado por outros e não só autoridades. Basta que eu sabia que o IP x é do Sergio Amadeu. Eu acabo seguindo o rastro digital. Então é uma coisa bem complicada do ponto de vista da privacidade.

O Ateísmo como militância social

Escrito por Mário Maestri   no Correio da Cidadania
 
Dentro do respeito às crenças individuais dos homens e das mulheres de bem, a militância ateísta é dever social inarredável para todos os que se mobilizam pela redenção da humanidade da alienação social, material e espiritual que a submerge crescentemente neste início de milênio, ameaçando a sua própria existência. Por mais subjetiva, introspectiva e sublimada que se apresente, a crença religiosa jamais nasce, se realiza e se esgota no indivíduo. Ela é fenômeno parido no mundo social, que influencia essencialmente a ação individual e coletiva.
 
Em forma mais ou menos radical, mais ou menos plena, mais ou menos consciente, a crença religiosa dissocia-se da objetividade material e social. Ela desqualifica o doloroso esforço histórico que permitiu ao ser humano superar sua origem animal e, percebendo a si e à natureza, começar a conhecer as leis imanentes ao mundo, na difícil, necessária e inconclusa luta pela harmonização da existência social.
 
A crença religiosa nega as crescentes conquistas da racionalidade, da objetividade, da materialidade, da historicidade, encobrindo-as com as espessas sombras da irracionalidade, da subjetividade, do espiritualismo. Desequilibra a difícil luta do ser humano para erguer-se sobre as pernas e moldar o mundo com as mãos, forçando-o a ajoelhar-se novamente, apequenado, temeroso, embasbacado diante do "desconhecido", sob o peso de alienação socialmente alimentada.
 
A crença religiosa droga o ser social com suas ilusões infantis de redenção conquistada através da obediência incondicional a estranho super-pai, que em muitas das mais importantes tradições espiritualistas, apesar de onisciente, onipotente e onipresente, e, assim, capaz de tudo dar aos filhos, lançou-os – no singular e no plural – em desnecessárias desassistência, miséria e tristeza.
 
É porque é!
 
A essência anti-científica da religião, que não argumenta, pois se nutre da crença incondicional no arbitrário, materializa-se na oposição visceral, mais ou menos realizada, ao maior tesouro humano, a capacidade de diálogo e de compreensão tendencial do universo. Que o digam Galileu e Giordano Bruno! Daí sua histórica intolerância, desconfiança e ojeriza para com o pensamento científico. E, verdadeiro tiro no pé, seu constante e paradoxal esforço para afirmar que a ciência seja uma crença a mais.
 
O pensamento religioso nega e aborta o ativismo e o otimismo racionalistas e materialistas, nascidos da possibilidade de compreensão, domínio e transformação do mundo social e material. Impõe visão pessimista, quietista, introspectiva e infantil do universo, essencialmente petrificado e eternizado pela materialização de transcendência, à qual o homem deve apenas submeter-se e render-se, para merecer a liberação.
 
Para tais visões, o ativismo e otimismo social são incongruências, ao não haver imperfeição social superável, já que esta última nasce da própria natureza humana, habitada pelo mal e pelo pecado, devido ao desrespeito a interdições primordiais do pai eterno – olha aí ele de novo –, origem do pecado. Pecado que exige incessante expiação e penitência, lançando o ser religioso em triste e mórbido mundo de culpa, de submissão, de punição.
 
Ativismo e otimismo sociais impensáveis para uma forma de compreender a sociedade em que não há história. Ou o que compreendemos como história se mostra ininteligível, pois regida essencialmente por determinações transcendentais paridas e concluídas à margem das práticas humanas. Realidade à qual, segundo tal visão, podemos ascender, muito limitadamente, apenas através da revelação.
 
Quando deus mata o homem
 
Na sua petrificação a-social e a-histórica, a religião cria um mundo chato, triste, deprimente, infantil, mórbido. Um universo que valoriza a paciência, a submissão, o imobilismo, o quietismo, a humildade, a transcendência, a espiritualidade etc., valores e comportamentos historicamente explorados pelos opressores, no esforço de manter o mundo imóvel, através de alienação e submissão dos oprimidos, nesta vida, é claro, pois na outra se sentarão à direita de deus-pai.
 
O ateísmo militante é necessário ao retrocesso da alienação, enormemente crescente em tempos de vitória da contra-revolução neoliberal. Ele impõe-se na luta por um mundo mais rico, mais pleno, mais livre, mais fraterno, em que o homem seja o amigo, não o lobo do homem. É imprescindível ao esforço de superação da miséria, da tristeza e da dor, materiais e espirituais, nos limites férreos da natureza humana historicamente determinada.
 
O ateísmo militante é democrático, pois tem como essencial meio de pregação a conscientização, individual e coletiva, da necessidade de assentar as práticas sociais nos valores da humanidade, da racionalidade, da liberdade, da solidariedade, da igualdade. Pregação racionalista e materialista que compreende que a superação da alienação espiritual será materializada plenamente apenas através da superação da alienação social e material.
 
O que exige intransigente luta política, cultural e ideológica pela defesa dos maltratados valores do laicismo, única base possível para convivência social mínima por sobre crenças religiosas, étnicas, ideológicas etc. singulares. Laicismo agredido pela despudorada exploração mercantil, política e social, direta ou indireta, por parte das religiões novas e antigas, da crescente fragilidade popular contemporânea. O monopólio público da educação e da grande mídia televisiva e radiofônica, sob controle democrático, e a ilegalização do escorcho religioso popular direto são pontos programáticos dessa mobilização.
 
O Céu e o Inferno
 
O ateísmo militante é pregação de adultos, conscientes do limite e dos perigos de empreitada subversiva, dessacralizante e mobilizadora, pois voltada para a necessidade do homem de retomar as rédeas de sua vida material e espiritual, no aqui e no agora. É jornada sem esperanças de premiações e de graças na outra vida, e sobretudo nessa, ao contrário do habitual nas religiões oferecidas como vias expressas para o sucesso individual, no rentável balcão da exploração da alienação.
 
O racionalismo militante é caminho difícil que premia os que nele perseveram com a experiência, mesmo fugidia, com o que há de melhor nos seres humanos, a racionalidade, a solidariedade, a fraternidade. Sentimentos e práticas vividos em forma direta, sem tabelas, pois a única ponte que liga os homens são as lançadas pelos próprios homens, entre homens construídos pela história à imagem e semelhança dos homens.
 
A vida racional é aventura recompensada, sobretudo, pelo inebriante desvelamento do encoberto pela ignorância e irracionalidade e pelo equilíbrio obtido na procura da harmonia social, por mais difícil e limitada que seja. Trata-se de caminho que permite, sem sonhar nem crer, seguir decifrando, alegre e desvairadamente, esse mundo crescentemente encantado e terrível. Viagem por esta vida terrena, valiosa, breve e única, sempre apoiada na lembrança de que, diante das penas e tristezas, não se há de rir ou chorar, mas sobretudo entender, para poder transformar.
 
Uma experiência de vida que, mesmo bordejando não raro o inferno, ou sendo elevada fugidamente aos reinos dos céus, sabe-se que tudo se passa e se conclui nesse mundo, concreto, terrivelmente triste e belo, sobre o qual somos plena, total, sem desculpas e irremediavelmente responsáveis.
 
Mário Maestri é rio-grandense, historiador, ateu, marxista, comunista sem partido. E-mail: maestri@via-rs.netEste endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email
 

O debate que as grandes empresas de comunicação querem interditar



A imprensa brasileira foge desse debate como o diabo da cruz. O debate sobre a regulação do setor da comunicação. A mínima menção sobre o mesmo provoca gritos tão eloqüentes quanto ignorantes sobre as ameaças à liberdade de expressão e de imprensa que o mesmo traria. É uma mentira deslavada. E a população brasileira precisa ser informada disso. A imensa maioria dos países apontados por essa mesma imprensa como modelos de liberdade de expressão (EUA e os países europeus) possuem legislações nesta área, algumas delas bastante restritivas no que diz respeito, por exemplo, à publicidade em horário nobre nos canais de televisão. Leis que existem em países com Suécia e Holanda, por exemplo, aqui seriam taxadas de chavismo ou algo do gênero. Esse comportamento, na verdade, não é exclusividade da imprensa brasileira, reproduzindo-se também em outros países.
Não se trata, na verdade, de um problema de imprensa ou de comunicação exatamente, mas sim de um problema político-econômico. As grandes empresas de comunicação no mundo inteiro, como se sabe, são hoje, em sua esmagadora maioria, braços midiáticos de interesses corporativos e ideológicos poderosos e mito bem identificados. Esses interesses seqüestraram os conceitos de liberdade de imprensa e de liberdade de expressão. E o que pior: trata-se de um seqüestro sem pedido de resgate. Querem manter os reféns em prisão perpétua.
Seguem duas sugestões de leitura que mostram que esse problema não é exclusivamente brasileiro.
O jornalista Ignácio Ramonet, ao receber o Prêmio Antonio Asensio, em Barcelona, criticou aqueles que fazem “entretenimento domesticado” ao invés de fazer jornalismo. “A imprensa escrita”, assinalou, “vive um dos momentos mais difíceis, e o jornalismo atravessa uma grave crise de identidade. O importante se dilui no trivial e o sensacionalismo substitui a explicação. A informação é algo muito sério, pois de sua qualidade depende a qualidade da democracia. Para ele, ainda há muitas injustiças no mundo que justificam uma concepção do jornalismo a favor de mais liberdade, justiça e democracia”. (leia mais aqui)
No Chile, a revista Punto Final publicou dia 15 de outubro um artigo de Paul Walder denunciando o que chama de “obsceno poder da imprensa chilena”. Os problemas apontados são muito similares:
É o provincianismo em sua pior expressão. Porque é a ignorância manipulada e conduzida. Hoje é o governo argentino, personalizado na presidenta Cristina Fernández, outro dia é Hugo Chávez. Há algumas décadas era o comunismo internacional e, numa determinada ocasião, foi um foguete sinalizador brasileiro. Os meios de comunicação chilenos, tal como ouvimos durante mais de uma década, estão aí (supostamente) para mostrar a verdade. Mas sua versão da realidade é o lugar dos interesses do poder. (leia mais aqui)

terça-feira, 2 de novembro de 2010

III Encontro Civilização ou Barbárie

Comunicação de Michel Chossudovsky


“Tudo aquilo que a Fundação [Ford] fez pode ser considerado no âmbito de “tornar o mundo seguro para o capitalismo”, diminuindo as tensões sociais ao ajudar a socorrer os angustiados, a proporcionar válvulas de segurança aos raivosos e a melhorar o funcionamento do governo (McGeorge Bundy, conselheiro de Segurança Nacional dos Presidentes John F. Kennedy e Lyndon Johnson (1961-1966) e Presidente da Fundação Ford (1966-1979).

“Ao pôr os fundos e o enquadramento político à disposição de muita gente preocupada e dedicada que trabalha no sector não lucrativo, a classe dirigente pode ir buscar líderes às comunidades de base,… e pode tornar o financiamento, a contabilidade e os componentes de avaliação do trabalho tão demorado e oneroso que o trabalho de justiça social é praticamente impossível nessas condições” (Paul Kivel, You Call this Democracy, Who Benefits, Who Pays and Who Really Decides, 2004, p. 122 )

“Na Nova Ordem Mundial, o ritual de convidar líderes da “sociedade civil” para os círculos interiores do poder – enquanto simultaneamente reprime os cidadãos comuns – satisfaz diversas funções importantes. Primeiro, diz ao Mundo que os críticos da globalização “têm que fazer concessões” para ganharem o direito de se misturar. Segundo, transmite a ilusão de que, embora as elites globais devam – no que eufemísticamente se chama democracia - estar sujeitas à crítica, governam legitimamente. E terceiro, diz “não há alternativa” à globalização: não é possível uma mudança radical e o mais que podemos esperar é negociar com esses governantes um ineficaz “dar e receber”.

Leia o texto na íntegra no DIARIO.INFO

Não é o que parece

Em um primeiro momento a vitória de Dilma pode parecer acachapante, considerando-se, inclusive, que é a terceira seguida da coligação do PT sobre a do PSDB em três eleições presidenciais. Pode parecer, ainda, que o Lulismo, em seu auge, desarticula o PSDB e o deixa em condições debilitadas para sequer ameaçar a maioria governamental no Congresso. O pragmatismo submeteu a discussão política a um segundo plano e os gênios da comunicação foram bem sucedidos ao embalar o produto de acordo com a avidez do consumidor em continuar com a festa do crescimento.
Embora tenhamos que reconhecer os méritos de Lula e a perseverança de Dilma, o quadro político que se revela no pós-eleição não é tão róseo quanto possa parecer.
Dilma é eleita com um pouco mais de 41% dos votos totais e somando-se abstenções, votos brancos e nulos temos quase 27% de eleitores que, não se entusiasmando com as opções, viraram as costas para os postulantes. Somando-se este contingente aos eleitores de Serra, temos a segunda e óbvia conclusão: Dilma foi eleita por uma minoria de eleitores. Lula, do alto de seus 83% de aprovação, só conseguiu transferir 50% de sua popularidade a sua pupila, agora presidente eleita.
Não digo isso para minimizar o extraordinário feito de Dilma que, do quase anonimato, tornou-se a primeira mulher eleita presidente do Brasil, o que não é pouca coisa. Digo porque a intenção afirmada em seu primeiro discurso pós resultado das urnas, é e precisa ser levado a sério. Quando diz que estenderá as mãos àqueles que não caminharam com ela, longe de ser um gesto generoso, é um gesto necessário e fundamental para a sobrevivência deste novo futuro governo.
Não são poucas as equações politicas a serem resolvidas. A oposição à presidente eleita liderará os estados com os maiores colégios eleitorais do pais, com mais de 52% dos eleitores. O “corredor oposicionista” vai de Santa Catarina ao Pará, presente nos Estados mais cosmopolitas ( com excessão do Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro) com maior população urbana e com intensa atividade agrícola e industrial. Embora com ampla maioria no Congresso, a gestão federativa não apresenta o mesmo conforto que as casas legislativas prometem. Prometem?
Aí vem o outro desafio: até onde vai a coligação liderada pelo PT nessas eleições?
O PMDB caracteriza-se como a fina flor do fisiologismo. Sempre foi governo não importando a coloração partidária do representante máximo da nação. No entanto, dessa vez, teve um importantíssimo papel para que os resultados apurados nas urnas fossem tão favoráveis à Dilma. A obediência quase cerimonial dos seus líderes às vontades do presidente e, claro, vice-versa, apontam agora uma expectativa muito além do discreto e palaciano conchavo. A expectativa do PMDB é a de dividir o governo em igualdade de condições e não deixará de explicitar a contabilidade acima para pressionar o governo Dilma pelo maior número de cargos-chave possíveis. O atual vice-presidente eleito já declarou que seus apaniguados estão cheios de “vontade de colaborar” e que ela não deve ser relativizada. Agora, não deixa de ser ironico que o PT, no auge de sua performance, passe a dever ao que há de pior na politica fisiológica o sucesso de seu futuro governo. Ora, são as armadilhas mortais que a lógica eleitoral impõe ( impõe?). A fraternidade exibida na campanha poderá adquirir nuances fraticídas no exercício do poder. Não dá para se esquecer dos recorrentes episódios envolvendo e originados nos Correios, não é mesmo?
Outro ponto cantado em prosa e verso e que em breve poderá, inclusive, habitar o que há de melhor na literatura de cordel, é o papel do Lula em um próximo governo. Lula é uma destas lideranças raras que não precisa de institucionalidades para se afirmar. Onde ele estiver, da sacada de seu apartamento em São Bernardo aos salões áulicos de Brasília, Lula sempre carregará o mistério dos oráculos. Persistirá a expectativa nacional de perscrutar através de seus olhos as sendas que nos levarão ao futuro promissor. Será ele o discreto e sábio conselheiro que tornará Dilma uma ponderada, eficiente e estratégica liderança? Ou Dilma, no ofício de construir pontes para viabilizar seu governo encontrará nele seu principal desarticulador? Não, é claro, pela falta da persistente dedicação que continuará a conferir à sua criatura, mas pela dificuldade de transferir o intransferível e tomar para sí o que não lhe cabe mais. Se assim fizer, a discípula do maior mestre politico que a democracia brasileira jamais produziu, acabará por se constituir em um arremedo a assombrar-se pelos salões do Planalto, frente a frente com os fantasmas da incompetência politica.
Assim, com uma votação que expressa menos da metade da vontade nacional; com uma oposição desarticulada nacionalmente mas fortemente entrincheirada nos estados; com uma coligação eleitoral que mal disfarça a ansiedade frente a partilha do botim; com a sombra persistente do carisma mítico e legendária de Lula, Dilma inicia sua caminhada rumo ao exercício da presidência. Este que será, provavelmente, o último mandato da geração de lideranças forjadas na luta contra a ditadura e que, embora artífices da redemocratização, ainda não conseguiram nos conduzir à modernidade democrática à altura das necessidades que o Brasil exige neste séc. XXI.
Desejo muita luz à nossa presidente eleita Dilma. Mas desejo ainda, mais fervorosamente, que o discurso proferido após a vitória, guie seus atos, fortaleça suas ações e que ela se torne, orgulhosamente, a primeira presidente mulher de todos os brasileiros.

Ricardo Young

Ricardo Young é empresário, graduado em Administração de Empresas pela FGV, presidente do Conselho Deliberativo do Yázigi Internexus; foi presidente da Associação Brasileira de Franquias (ABF). Foi presidente do Instituto Ethos; conselheiro das organizações Global Reporting Initiative (GRI) em Amsterdam, Holanda, Accountability, em Londres (Inglaterra) e Grupo de Zurich (Suiça).