A análise e o acompanhamento das transformações observáveis ao longo da
implementação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira (RO) são cruciais
no sentido de testar as metodologias, procedimentos e indicadores que
têm sido apresentados como um "novo paradigma" de construção de grandes
UHEs na Amazônia, que irá nortear a expansão da fronteira elétrica na
região. Durante a fase prévia do licenciamento dos empreendimentos, o
conjunto de incertezas, técnica e socialmente identificadas, para a
população e o meio ambiente, foi certificado como válido e passível de
monitoramento.
Na fase de instalação, subseqüentemente, os consórcios obtiveram plena
discricionariedade para impor seus cronogramas físico-financeiros,
independentemente da execução plena e prévia dos programas
compensatórios e mitigatórios.
Na região do município de Porto Velho (RO) e adjacências, configurou-se,
a partir do início das obras das Usinas Hidrelétricas de Jirau e Santo
Antônio no rio Madeira, a partir de 2008, uma dinâmica social de novo
tipo, com descontinuidades intensificadas no espaço e no tempo, com
efeitos assimétricos sobre os grupos sociais afetados. Esses efeitos são
desproporcionais e diferenciados segundo a posição e o lugar relativo
dos grupos sociais em relação à intervenção referida. Quanto mais
vinculados ao ciclo do rio e de suas margens, maior a perda e dissipação
de poder material e simbólico. Quanto mais instrumentalizados forem em
função dos requisitos e do cronograma das duas obras, maior a
invisibilidade e descartabilidade dos mesmos, incluindo a força de
trabalho direta e indiretamente mobilizada pelas obras, bem como a
população que vai engrossando as áreas peri-urbanizadas da cidade
anfitriã dos dois mega-projetos.
Os danos sócio-econômicos, culturais e ambientais já consubstanciados na
instalação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira constituiriam motivo
suficiente, houvesse rigor proporcional na aplicação da legislação
ambiental ao nível de classificação de risco dos empreendimentos, para a
paralisação das obras e a subseqüente revisão não apenas de sua
metodologia, cronograma, mas da própria viabilidade ambiental atribuída
sob chantagem privada e coerção governamental. Para além das parcas
medidas de compensação e mitigação previstas no licenciamento das duas
obras, está em jogo nesse caso a plena autonomia conferida aos
Consórcios titulares das novas concessões de aproveitamento hidrelétrico
na Amazônia, para gerir o que eram antes considerados "bens públicos".
Com o intuito de consolidar a participação do setor privado (PSP) nas
áreas de infra-estrutura, a ordem unida é a regulamentação
desregulamentadora nas três esferas governamentais, bem como em todas as
instâncias setoriais, creditícias e fiscalizadoras respectivas
(Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, Agência Nacional de Águas,
Ministério das Minas e Energia, ANEEL, BNDES, TCU). Flexibilidade
institucional dirigida para o planejamento territorial corporativo e,
subsequentemente, para o rebaixamento ainda maior dos patamares mínimos
de direitos sociais e de salvaguardas ambientais.
O aplainamento do processo de licenciamento, de concessão e de
financiamento desses dois aproveitamentos hidrelétricos no rio Madeira é
uma derivação lógica da política de atração de investimentos para o
setor de infra-estrutura, o cerne do PAC (Programa de Aceleração de
Crescimento), lançado em 2007 e relançado como PAC 2, em 2010. Essa
iniciativa, vista de forma superficial, seria tão somente um programa de
execução de obras prioritárias, quando na verdade compreende também uma
agenda de facilitações regulatórias e creditícias pró-mercado, através
de reformas administrativas e setoriais nos órgãos e na legislação
ambiental, bem como da reestruturação do BNDES. Essa conjunção
materializada na emissão das Licenças Prévias e de Instalação das Usinas
do rio Madeira e na viabilização de seus respectivos leilões fez surgir
um novo e temerário paradigma de "licenciamento automático"(1). A
instalação dessas usinas, na forma como se apresenta, equivale a um
salvo-conduto institucional para a reabertura de um novo ciclo de
grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, em território brasileiro e
transfronteiriço.
Já instalados os canteiros de obras das duas usinas, impôs-se a
verificação de como a precarização e flexibilização de sua
regulamentação vêm se refletindo na sua implementação efetiva.
Procurou-se, por conseguinte, diante das lacunas processuais
oficialmente internalizadas, avaliar a possibilidade mesma de se
atestar, nessas condições, consistência e adequação das ações de
remanejamento e as medidas de compensação e mitigação dos impactos
previstos nas comunidades a montante das UHE de Jirau e Santo Antônio.
Como é possível compensar o que nem sequer foi mensurado ou reconhecido
como perda ou dano? Governo e empreendedores determinam, a partir das
UHEs no rio Madeira, que subjetividades e direitos coletivos são
passíveis de compra e venda.
Como concessões elétricas traduzem-se em cessões territoriais
O maleável regime de concessões do setor elétrico aplicado a grandes
aproveitamentos hidrelétricos na Amazônia tem redundado em oficiosos
processos de cessão, a grandes conglomerados privados, de porções
territoriais estratégicas para o país. Tal como o Projeto Grande
Carajás(PA), aprovado em 1982, o Projeto Complexo Madeira é que define a
região que lhe cabe. Grandes Projetos de Investimentos (GPIs), ao
gerarem espaços em função da máxima eficácia dos investimentos aportados
neles, não poderiam deixar de planejar e gerir esses mesmos espaços.
Contudo, à diferença das décadas de 70 e 80, quando o regime militar
procurava incorporar a Amazônia à estrutura produtiva do centro-sul do
país por meio de obras viárias e de incentivos fiscais, a partir dos
anos 90 o avanço da fronteira econômica na região passa a ser
crescentemente dirigido por cadeias globais de valor. As mediações
políticas derivadas de uma rígida divisão inter-regional do trabalho
foram sendo substituídas por fórmulas territoriais flexíveis condizentes
com as novas estratégias de deslocalização dos investimentos e ajustes
espaciais consecutivos. O que não significa ausência de política ou do
Estado, e sim seu pleno disciplinamento em coalizões privado-públicas,
necessariamente nesta ordem. O que pode ser mais ativo, em termos
político-operacionais, que medidas progressivas de liberalização
comercial e flexibilização legal, além do empenho de estatais, bancos e
fundos públicos e semi-públicos na formação de conglomerados
empresariais com raio de atuação no Brasil e/ou a partir dele?
O Projeto Complexo Madeira, que se articula a outros projetos de
interconexão de infra-estrutura no continente, serve de trampolim para
impulsionar uma série de novos mega-projetos na Amazônia. A meta é
estruturar e potencializar plataformas e corredores de exportação, com a
disponibilização não só de energia hidrelétrica e recursos naturais
conexos (terras, jazidas minerais, madeira e biodiversidade), mas da
plasticidade territorial que se fizer necessária, ou for convidativa,
aos conglomerados privados. Os arranjos empresariais resultantes são
concomitantemente eleitos pelo Estado e eletivos das políticas setoriais
deste. O novo planejamento territorial em operação na Amazônia
paradoxalmente dinamiza nossas vantagens comparativas estáticas, em um
processo de acumulação extensiva marcado por especializações regressivas
em termos de agregação de valor e inovação tecnológica.
O compartilhamento jurisdicional empresas-Estado, da região do alto
Madeira, teve início ainda na fase dos estudos ambientais do Complexo
hidroelétrico. Procedeu-se em 2007 uma alteração regulamentar dos
patamares de suficiência de comprovações técnicas e de compromissos
públicos requeridos para atestar a viabilidade ambiental e social das
duas usinas. O seu licenciamento a fórceps ensejou o desmanche como um
todo do licenciamento ambiental nacional. O próprio órgão licenciador, o
IBAMA, sofreu uma intervenção administrativa, em 2007, que além de
fragmentar suas funções originais delimitou-as, retirando dele
capacidade de vetar projetos considerados de "interesse nacional". Na
análise do Estudo de Impacto Ambiental e de suas complementações, a
cargo do então Consórcio Furnas-Odebrecht (hoje Santo Antônio Energia),
identificamos as seguintes distorções e incongruências:
a) Minimização das áreas de impacto direto e indireto com a exclusão do território da Bolívia e das áreas a jusante.
b) Anulação da necessidade prévia dos estudos de bacia.
c) Adoção de metodologias e critérios de certificação que minimizam e mascaram os danos.
d) Definição arbitrária dos Consórcios dos próprios critérios de
suficiência ou de insuficiência de estudos, e medidas mitigatórias e
compensações decorrentes.
e) Aprovação das Licenças Prévias e de Instalação com condicionantes
que procuram substituir o vazio de informação e de diagnóstico pelo
monitoramento das incertezas, o que significa que os empreendedores
adquiriam autonomia para definir os próprios parâmetros da instalação e
operação das usinas.
Esses vícios de origem no processo de licenciamento das UHEs do rio
Madeira reproduziram-se e desdobraram-se no momento de elaboração e de
implementação dos Projetos Básicos Ambientais a cargo dos Consórcios
Energia Sustentável do Brasil(ESBR) e Santo Antônio Energia (SAESA). Nos
dois PBAs consta o princípio de que o empreendedor fica obrigado a
recompor as condições de vida e das atividades produtivas na área
diretamente afetada pelas obras e pela formação do reservatório. Em
tese, a recomposição das atividades e da qualidade de vida, por meio de
indenização justa ou do remanejamento, deveria se dar "em condições pelo
menos equivalentes às atuais". O Programa de Remanejamento a cargo do
Consórcio Santo Antonio Energia, por exemplo, reitera o compromisso de
que se ofereça indenização ou processo de realocamento de modo que
"todos os afetados deverão ter condições de ser remanejados para uma
propriedade pelo menos equivalente" (2).
No entanto, não foram prescritos ou previstos indicadores, critérios e
metas para que essa obrigação fosse cumprida, ou seja, sobre como seria
essa "recomposição", com quais meios, recursos e prazos. O modelo
de reassentamento em agrovilas estranhas às tradições comunitárias
ribeirinhas, e ainda por cima localizadas em solos inférteis sem acesso
ao rio e seus igarapés, constituiu uma via de mão única na "negociação"
da realocação da população atingida. Cerceados pela contagem regressiva
do despejo, cerca de 85% dos afetados submeteram-se ao instrumento da
indenização ou da carta de crédito, proporção averiguada pelo próprio
IBAMA(3). O que deveria ser exceção tornou-se regra, em termos de
deslocamento compulsório, no decorrer da instalação das UHEs no rio
Madeira. Modos de vida amazônicos singulares não deveriam ser
levianamente contabilizados e sim protegidos e sustentados por políticas
públicas que reconhecessem e valorizassem as múltiplas abordagens
coletivas no trato do espaço e do tempo. A indenização exclusivamente
monetária é uma amortização sumária dos compromissos sociais formalmente
assumidos pelos Consórcios junto à população atingida, uma política
oficial de erradicação de dezenas de comunidades ribeirinhas, agora
entregues à sua própria sorte em novas frentes irregulares de ocupação
urbana e rural.
O negligenciamento no cumprimento dos já rebaixados parâmetros sociais e
ambientais se refletiu na falta de detalhamento das diretrizes
constantes nos PBAs das UHEs de Jirau e Santo Antonio. Essa metodologia
de auto-licenciamento depende de combinações nas múltiplas escalas de
governo, o que implica em negociações cruzadas, paralelas ou oficiais,
no uso das verbas de compensação social e rearranjos das contrapartidas
federais, estaduais e municipais. Um complexo intercâmbio de interesses
entre grupos econômicos globais e locais e suas representações políticas
ocorre sob a conveniente fachada de "fornecimento de energia para o
Brasil" e "geração de emprego e renda na região".
O processo de desterritorialização levado a cabo por grandes projetos de
mineração na Amazônia se articula com aquele produzido pelos projetos
hidrelétricos na região. Ambos se retroalimentam, em ordem direta e
reversa. No entorno do Complexo Madeira, o processo de
desterritorialização e de reterritorialização vai se consumando
diligentemente, pelo grau de interpenetração dos Consórcios e
conglomerados anexos com os aparelhos governamentais regulamentadores e
fiscalizadores.
A apropriação do alto Madeira e a definição da forma predominante de seu
uso se associa a estratégias simbólicas de universalização da forma
tida como a mais "adequada" para utilização daquela territorialidade. A
implementação célere e brutal das UHEs de Santo Antônio e Jirau se vale
do alicerce objetivo de expropriações sucessivas, promovidas no bojo da
formação territorial do estado de Rondônia. E ainda conta com o
beneplácito subjetivo de uma população majoritariamente migrante, que,
vítima e órfã de um modernização periférica, se dispõe a qualquer
sacrifício em nome de seu "repatriamento" a qualquer dinâmica que remeta
à centralidade altiva do "progresso", especialmente quando o objeto de
sacrifício maior lhe pareça alheio e exterior, como as comunidades
tradicionais que vivem ao longo do rio Madeira.
O controle e o uso compartilhado das águas e várzeas do rio Madeira pôde
proliferar no interregno dos surtos de expansão mercantis. Exatamente
por isso nunca foram objeto de políticas públicas que dinamizassem suas
potencialidades horizontalizantes, que lhes providenciassem
regularização fundiária, créditos preferenciais, programas de extensão
de caráter agroecológico e infra-estrutura social. Depois de inserido no
mapa dos grandes negócios, agentes econômicos e as arenas estatais por
eles manejadas, o rio Madeira é estampado como providencial
estoque/escoadouro de energia, commodity basilar, porque insumo das demais commodities que têm definido o ritmo de crescimento e o perfil produtivo do país.
Madeira: restabelecer a controvérsia e o contraponto
Podemos atestar que a defasagem entre os direitos e os interesses da
população local e o processo de licenciamento e implementação das UHEs
de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira foi voluntária e
premeditadamente construída pelas empresas concessionárias, com anuência
e colaboração do poder público.
Como bônus extra, os Consórcios Santo Antônio Energia (SAESA) e Energia
Sustentável do Brasil (ESBR) podem vender 100% da energia gerada antes
dos prazos previstos contratualmente (dezembro de 2012 e março de 2013,
respectivamente). Os dois consórcios pretendem antecipar a geração em
até 11 meses por isso e contam com a benevolência da ANEEL e do MME para
tanto. Alucinados cronogramas de execução das obras são a contraparte
da ausência de cronogramas físico-financeiros dos programas de
compensação e de mitigação, da mais completa negligência para com a
população que vive ao longo do rio Madeira e com seu meio ambiente. Se
nem sequer as condicionantes da Licença Prévia foram cumpridas, como
acenar com a emissão antecipada da Licença de Operação, sem que se
consolidem mínimas salvaguardas sociais e ambientais?
Na direção contrária, o procedimento democrático elementar, frente ao
conjunto de evidências de descumprimento flagrante de compromissos
legais por parte dos Consórcios liderados pela Odebrecht e pela Suez,
seria a suspensão da Licença da Instalação das Usinas de Santo Antônio e
Jirau e o estabelecimento de um balanço rigoroso das irregularidades
cometidas. Existisse um Ministério de Meio Ambiente com efetividade
similar ao de Minas e Energia, ou um Poder Judiciário desincumbido de
blindagens casuísticas, esta seria a única diretiva cabível diante de
mais um desastre social e ambiental em curso na Amazônia.
Em paralelo e procurando explicitar toda a extensão dos danos já
verificáveis produzidos por essas obras incondicionadas, propomos a
criação de uma Comissão de investigação, composta por especialistas,
representantes do Ministério Público Federal, dos movimentos sociais e
da população atingida, para fornecer um quadro fidedigno da
desestruturação social e ambiental que se dá na região do rio Madeira.
Iniciativa que procurará colocar em pauta a revisão do licenciamento
ambiental das duas usinas projetadas, bem com a rediscussão do projeto
Complexo Madeira como um todo.
Seria tarefa prioritária dessa Comissão, em especial dos grupos de
pesquisa universitários adjuntos, explicitar o novo modelo de
investimento e de financiamento aplicado à construção das UHEs de Santo
Antônio e Jirau, identificando atores-chave, suas metodologias obscuras e
truculentas, de modo a possibilitar a responsabilização e
co-responsabilização dos mesmos, em particular do BNDES.
É crucial que se exponha a célere territorialização corporativa de que é
objeto a sub-região protocolarmente denominada "Sudoeste da Amazônia",
no Plano Amazônia Sustentável(PAS), assim como as formas de atualização
do bloco de poder inter-escalar que implicam em novas fórmulas
hegemônicas. Em contraponto, é preciso demarcar as territorializações
ribeirinhas, indígenas e camponesas resilientes, e também as pontes
possíveis com dinâmicas disruptivas de base urbana. A questão central
aqui colocada é: haverá um "nós" denso e representativo para evocar o
significado dessa renúncia, renúncia ao Madeira, ao Xingu, ao Tapajós e
demais rios amazônicos, a tudo que aflora, circula, brota e se
multiplica com seus fluxos?
Luis Fernando Novoa Garzon é professor da Universidade Federal de
Rondônia, membro da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras
Multilaterais e doutorando em Planejamento Urbano e Regional
(IPPUR-UFRJ). Contato:
l.novoa@uol.com.brEste endereço de e-mail está
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Notas:
1) GARZON, L., F. Novoa. O licenciamento automático dos grandes projetos de infra-estrutura no Brasil: o caso das usinas no rio Madeira. Revista Universidade&Sociedade nº 42, p.37 a 58, ANDES, Brasília, junho de 2008
2) PBA da UHE de Santo Antônio, 2008 seção 22 p.5.
3) Parecer 029/2010. COHID/CGENE/DILIC/IBAMA, p.11
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