Thalles Gomes
“Eu
sou haitiano. Eu saí do ventre da África Guiné. Eu fui transportado
para o Haiti. Eu misturei meu sangue com o sangue dos índios, que foram
os primeiros donos desta terra. Eu misturei meu sangue com o sangue dos
brancos, que me escravizaram. Eu sou haitiano. Ser que é feito de corpo,
ser que é feito de alma. O poder de Olowoun me deu a responsabilidade
de conduzir, respeitar e aproveitar tudo aquilo que eu posso ver e tudo
aquilo que eu não posso ver sobre esta terra.” Assim começa a oração
entoada por centenas de camponeses e camponesas que participaram nos
dias 11 a 14 de agosto, nas montanhas de Mawotyè no Noroeste do Haiti,
do Encontro de Vodouizantes em homenagem aos 219 anos da celebração
vodou mais famosa da história: a Cerimônia de Bwa Kayiman.
Na
noite de 14 de Agosto de 1791, cerca de duzentos escravos e escravas se
reuniram nas matas de Bwa Kayiman, extremo norte do país. Cada uma
dessas pessoas havia sido convocada pessoalmente em diferentes rincões
da ilha. O homem que deu origem a essa convocatória se chama Boukmann.
Ele é um Hougan, sacerdote principal do Vodou. Dentre os presentes estão
todos os futuros comandantes da Revolução Haitiana, como Jean Jacques
Dessalines, Toussaint Louverture e Capois La Mort. Boukmann explica que
foram os Lwas, espíritos do vodou, que decidiram reunir todos eles. Não
para pedir-lhes algo, mas sim para comunicar-lhes da decisão dos Lwas:
iniciar a batalha pela libertação do Haiti. Com o sangue proveniente do
sacrifício de um porco, um pacto secreto e sagrado é selado entre os
presentes na cerimônia. Uma pacto que transcende a vida e a morte, entre
eles e os espíritos, que garantiria o triunfo sobre o inimigo europeu.
13 anos depois da Cerimônia de Bwa Kayiman, derrotando os três maiores
exércitos europeus da época – Espanha, Inglaterra e França –, os negros e
negras haitianos levam a cabo em 1804 a primeira revolução de escravos
vitoriosa da história e declaram o Haiti território livre e
independente.
“Passados
219 anos desde que nossos ancestrais decidiram se levantar contra o mal
que assolava nossa nação, nós vivemos hoje em dia sob o jugo da mesma
exploração, da mesma miséria da época colonial”, afirma o hougan Monmus
Ervilus Tibos aos participantes do Encontro Vodouizante em Mawotyè. “Nós
precisamos construir um novo Bwa Kayiman. Nós precisamos de um novo
Boukmann, de um novo Dessalines entre nós”, conclama Tibos, entre palmas
e gritos de Ayibobo! (aleluia) dos camponeses e camponesas presentes.
Mas, afinal, que religião é essa na qual os vivos e os espíritos caminham juntos em busca da liberdade de seu povo?
Lwas libertadores
Com
sua origem entre os escravos do antigo Egito, cultivada por distintas
etnias africanas, o vodou, nas palavras da pesquisadora venezuelana
Jenny Gonzalez Muñoz, “é um viajante que acompanhou os escravos
africanos na longa travessia a bordo dos navios negreiros”. Muñoz
acrescenta que “ao chegar às terras que constituem atualmente o Haiti,
esta crença ou prática religiosa se enriquece com os aportes nativos e
europeus. Seu culto se focaliza em gênios e deuses como uma homenagem
aos Lwas, que transcendem a forma material humana ou animal, em um ato
de fé onde os Hougan e os Bòkò, quer dizer, os sacerdotes e os médiuns,
se convertem em verdadeiros canais de comunicação entre os seres
transcendentais e os terrenos”.
Ao
trazer o sobrenatural para a realidade cotidiana, colocando os
espíritos dos ancestrais lado a lado com os viventes, o vodou se
configura numa ferramenta de união e identidade entre os escravos
haitianos, criando assim uma solidariedade possível somente quando se
compartilha algo que os une desde o além. É por essa razão que o vodou
ganha força crescente na ilha como uma forma de organização que aglutina
as tendências emancipatórias e revolucionárias. Esclarece González
Muñoz, em seu artigo Vaudou: herencia africana en la sangre americana,
que “sob a figura do vodou e do kreyòl, o primeiro como fé que tem como
denominador comum a procedência e as condições de seus fiéis, e o
segundo como idioma único não compreensível para os europeus, se cria
uma espécie de cumplicidade entre os escravos”. Essa cumplicidade incompreensível se converterá num poder que se lançará contra o inimigo para imprimir-lhe o temor e a derrota.
Não
seria errado afirmar, dessa forma, que as palavras e sons sagrados do
vodou foram o ponto crucial da libertação do povo haitiano.
Represália ocidental
Tamanha ousadia não sairia impune, pelo menos aos olhos dos brancos. Não tardou muito para que as elites ocidentais lançassem sua represália contra o vodou e seu rebento, a revolução haitiana.
Se
o Haiti sofreu com embargos econômicos, pagamento compulsório da dívida
da independência, sucessivas ocupações militares estrangeiras e a
ingerência constante das potências norte-americanos e européias – que o
transformaram da colônia mais próspera do século XVIII à nação mais
pobre do continente americano no século XXI –, o vodou foi rapidamente
identificado pela civilização branca ocidental como uma crença selvagem e primitiva, que cultuava forças satânicas e praticava a magia negra.
Essa
tentativa de deslegitimação do vodou foi reforçada pelas autoridades
católicas e protestantes, em aliança com as elites locais. Não custa
lembrar que a entrada das igrejas protestantes no Haiti ocorreu
justamente no período da primeira ocupação militar estadunidense, entre
1915 e 1934. E que são as organizações católicas e protestantes que
dominam o ensino no país. Atualmente, 60% das instituições de ensino
haitianas estão nas mãos de entidades cristãs.
O
resultado dessa empreitada foi o fortalecimento do preconceito e
perseguição contra o vodou e seus praticantes. Dezenas de hougan foram
presos e assassinados e as celebrações vodou se tornaram cada vez mais
clandestinas. Foi somente em 1987 que essa perseguição começou a perder
parte de seu ímpeto, quando a atual Constituição Haitiana foi
promulgada, dando plenos direitos de culto aos vodouizantes.
As
estatíticas oficiais indicam que 80% dos haitianos se declaram
católicos, 16% protestantes e apenas 3% vodouizantes. Esses dados,
entretanto, não indicam a verdadeira força do vodou entre o povo
haitiano. Lidando com o forte preconceito que ainda persiste contra os
vodouizantes declarados, não é raro encontrar um haitiano ou haitiana
que se proclama cristão, freqüenta missas e cultos pela manhã, e no
calar da noite busca os tambores vodou no meio das matas para dançar e
cultuar os Lwas.
Mais do que uma religião
Mas
não é só por essa razão que se pode medir a força do vodou. Presente
principalmente no meio camponês, que representa 66% da população
haitiana, o vodou se expressa por outras formas além do culto aos Lwas.
Uma dessas expressões é o Rara, que engloba danças, ritmos e
instrumentos musicais nascidos da junção entre as celebrações
vodouizantes e os mutirões de trabalho nas roças camponesas. Com
presença garantida em todas as festividades no meio rural, o Rara tem no
mês de abril o seu momento de ápice, quando concursos e festas de rua
se espalham por todo o campo haitiano, com bandas e grupos Raras que
arrastam milhares de seguidores, naquele que é conhecido como o carnaval
camponês do Haiti.
Outro
função importante desempenhada pelo vodou é na área da saúde. Num país
que possui apenas um hospital para cada 200.000 habitantes, os Hougan e
Mambò – sacerdotes e sacerdotisas – jogam um papel fundamental no
tratamento das famílias camponesas. Detentores do ‘segredo das folhas’,
com seu conhecimento ancestral em medicina natural e alternativa, são
eles que costumam curar boa parte das enfermidades que assolam os
camponeses e camponesas haitianos.
De
fato, sendo o Estado no Haiti praticamente inexistente e incapaz de
estender seus serviços básicos à grande maioria do campo haitiano, o
vodou se configura como uma poderosa organização social capaz de
articular dentro de si atividades religiosas, culturais, sociais e
políticas.
O vodou e a reconstrução
Entretanto,
apesar de toda essa representatividade e experiência, que poderiam
ajudar o país a superar o atual momento de ocupação militar das tropas
da MINUSTAH e de refundação da nação após o terremoto de 12 de Janeiro
de 2010, o vodou e seus representantes não estão inseridos nos debates e
espaços públicos de reconstrução do Haiti.
Um
exemplo dessa segregação é o CIRH – Comitê Provisório para a
Reconstrução do Haiti –, criado em março deste ano com a
responsabilidade de definir e gerir os recursos e projetos para a
reconstrução pós-terremoto. Com a participação de diversos estrangeiros e
presidida pelo estadunidense Bill Clinton, o CIRH não conta com a
presença de nenhum hougan ou representante vodouizante.
“Por
que os vodouizantes não estão participando do processo de reconstrução
do país?” indaga Dyo Fenne Lendi, hougan porta-voz da Zantray (Zanfan
Tradiksyon Ayisyen), organização nacional que congrega hougans e
vodouizantes de todo o país e que convocou o Encontro de Mawotyè.
“Boukman não construiu o Bwa Kayiman para nós servimos ao estrangeiro.
Não podemos nos tornar uma mercadoria nas mãos dos políticos e
poderosos. Foi através do vodou que nossos ancestrais derrotaram a
exploração escravista e será a partir dele que nós vamos tirar nossa
nação da situação em que ela se encontra”, assegura Dyo Fenne.
É
neste sentido que a Zantray está construindo, junto com outros 600
centros Vodou, a Confederação Nacional dos Vodouizantes Haitianos
(KNVA). Mais do que reivindicar sua inclusão na atual sociedade
haitiana, os vodouizantes da Zantray buscam a construção de uma novo
Haiti, que resgate os principios de solidariedade e soberania de
Boukman, Dessalines, Toussaint e Capois La Mort.
Ópio do povo?
Quando
afirmou que a religião era o ópio do povo, Karl Marx provavelmente não
conhecia o Vodou haitiano. Tivesse entrado em contato com a religião
construída pelos escravos e escravas desta ilha, o autor de O Capital
talvez mudasse sua afirmação. Sem esconder certa malícia dialética,
diria que, neste caso, o Vodou é e não é o ópio do povo.
Ao
conjugar o transcendental e o terreno, a fé e a prática, a mística e a
política, o Vodou vai mais além de uma simples religião e se transforma
num instrumento original de união e poder do povo haitiano na sua luta
por libertação.
Thalles Gomes
de Mawotyè (Pòdepè)/Haiti
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