quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Google para Historiadores

Extraido do CafeHistoria

Empresa americana lança aplicativo que promete conquistar historiadores e pesquisadores de ciências humanas em geral. O que ele faz? Permite traçar tendências culturais e políticas nos últimos duzentos anos.

O Google Labs, inovadora seção de aplicativos protótipos do Google, lançou no último dia 16 de dezembro o "Google Books Ngram Viewer", uma ferramenta elegante e que pode em breve se tornar um verdadeiro aliado para pesquisadores, professores ou mesmo estudantes. O "Books Ngram Viewer" utiliza o banco de dados do "Google Books" (sistema de livros digitalizado online para consulta gratuita) para contar quantas vezes um mesmo nome, frase, termo, expressão ou conceito foi utilizado entre 1800 e 2000. Assim, com apenas alguns cliques é possível saber em menos de um segundo a trajetória de uma palavra ao longo de dois séculos de cultura escrita e descobrir um pouco mais sobre as tendências culturais, políticas e sociais de nosso tempo.

Em um primeiro momento, o Books Ngram Viewer (http://ngrams.googlelabs.com/) não chama muito a atenção dos internautas, hoje acostumados às dezenas cores, animações e outras pirotecnias que os grandes sites promovem para conquistar o público. Em sua tela, o internauta precisa preencher apenas três espaços: palavra(s), período e a língua a ser pesquisada. Depois, basta clicar em "Search lot of books". O sistema, então, irá consultar um banco de dados de mais de 500 bilhões de palavras, divididas entre 5 milhões de livros, publicados entre 1800 e 2008 e digitalizados pelo Google nos últimos anos. Essa consulta - que não leva mais do que dois segundos - gera um gráfico no qual é possível observar a evolução (ou involução) de uma palavra ao longo do tempo.

Essa simplicidade arrasadora é o suficiente para oferecer um mar de possibilidade de estudos. Atualmente, é possível consultar bancos de dados de livros em inglês, francês, espanhol, alemão, chinês e russo. Pode-se inserir uma ou mais palavras. Pode-se ainda comparar os resultados de uma palavra dentro do universo de livros em inglês e em chinês ou espanhol. Por exemplo: o grau de incidência da palavra "terrorism" dentro das publicações em inglês é muito diferente desta mesma palavra em outras línguas, mostrando o lugar que esta expressão tem na cultura americana.

Como tudo começou

O "Books Ngram Viewer" nasceu da necessidade de uma pesquisa acadêmica. Em 2004, Jean-Baptiste Michel e Lieberman Aiden, de Harvard, começaram uma pesquisa sobre verbos irregulares no inglês. Eles desejavam determinar quando formas verbais específicas deixaram de ser usadas em detrimento de outras, mais modernas. Na época, esse tipo de pesquisa implicava na leitura, página por página, de milhares de livros. O processo todo lhes custou longos 18 meses. Pouco mais de um ano depois, os acadêmicos de Harvard souberam dos planos do Google para digitalizar todos os livros do mundo, algo que foi parcialmente alcançado com o Google Books, que digitalizoiu 11% dos livros do mundo. Aquele parecia ser o tipo de tecnologia ideal para a pesquisa de Aiden e Michel e provavelmente para outros milhares de pesquisadores em todo o mundo. Assim, os dois entraram em contato com Peter Novig, diretor de pesquisa do Google. Novig logo percebeu a importância daquela idéia para a ciência e deu carta branca para os desenvolvedores. O Books Ngram Viewer é a versão mais acabada desta idéia e utiliza 4% do banco de dados do Google Books. A nova ferramenta foi lançada na última semana e descrita em um artigo intulado "Quantitative Analysis of Culture Using Millions of Digitized Books", publicado  na revista Science (tiny.cc/td0rd). O Google Books Ngram Viewer utiliza um método de modelagem chamado N-gram, que possibilita buscas em sequências de linguagem natural. Para os pesquisadore envolvidos na criação, a ferramente significa a abertura de uma nova abordagem para os estudos culturais. Nos últimos dias, não se fala em outra coisa nos principais círculos das ciências humanas. A sensação é que algo revolucionário está sendo criado.

Historiadores

Para os historiadores, o programa desenvolvido pelo Google é uma ferramenta incrível de auxílio à pesquisa. Como bem se sabe, as palavras não são entidades estáticas, programadas para ter um começo, meio e fim. Mas pelo contrário: são vivas, políticas, sujeitas à ação dos homens em sociedade. E o Books Ngram Viewer mostra muito bem isso. Com ele torna-se possível identificar quais termos são mais sensíveis que outros, desvendar dimensões até então pouco abordadas da memória social e outros processos polítcos e sociais de diversos períodos históricos.

O Café História testou várias combinações. No clássico Brazil x Argentina, na língua inglesa, por exemplo, nós continuamos dando de goleada. O Brasil sempre foi muito mais citado do que o vizinho. No entanto, é curioso observar que tanto o crescimento quanto a queda das referências a ambos seguem o mesmo padrão. A década de 1940 representa o período de maior menção aos dois países, o que pode ser explicado pelo auge da cultua do American Way of Life e sua influência na América do Sul. Confira no gráfico abaixo:
Curioso também notar a trajetória de palavras caras à historiografia. É o caso do termo "holocaust", utilizado para se referir ao extermínio de seis milhões de judeus durante o Terceiro Reich (1933-1945). Segundo o Books Ngram Viewer, a palavra conheceu um verdadeiro boom na década de 1980, o que reforça decisivamente teses acadêmicas já existentes e que apontavam aquela década como um período de consolidação da memória do genocídio nazista. Para os historiadores, a década de 1980 testemunhou uma proliferação de filmes, museus e outros eventos memorialísticos que tiveram um grande impacto na representação do extermínio dos judeus no século pasado, sobretudo na produção de referências bibliográficas.

Esse processamento dos dados, que Lieberman chamou de "culturomics" ("cultorômica", em língua portuguesa), está ao alcance de todos. O site já está no ar, é gratuito e o melhor: pode ser baixado por qualquer usuário e explorado em detalhes, a partir de suas próprias ferramentas de busca. Além do Google e de Harvard, fazem parte da equipe de gerenciamento do Ngram pesquisadores da Enciclopédia Britânica e do Dicionário Americano Heritage. Confira o site sobre a recém-batizada "Culturômica": http://www.culturomics.org/

Enquanto isso, mesmo para os não-acadêmicos, o programa já diverte os meios de comunicação. O jornal OGLOBO fez um contraste entre "women" (mulher) e "man" (homem), descobrindo que o primeiro era raramente mencionado até o início dos anos 1970, momento em que o feminismo ganha força. A partir daquela década as duas linhas do gráfico movem em direções opostas até se encontrarem em 1986. Já o site Read Write Web fez uma série de 10 comparações, que você pode conferir clicandono seguinte link. Destaque para a comparação entre os meios de comunicação:

Não perca tempo. Visite esta importante novidade na internet e faça uso dela para aprimorar suas pesquisas e estudos. A história vem passando por grandes transformações e você não precisa ser um mero espectador.

Deputados estaduais aprovam reajuste de mais de 73% em seus salários


Bruno Alencastro/Sul21
Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Felipe Prestes no Sul21

Os deputados gaúchos aprovaram hoje (21) o PL 352/2010, que aumenta seus próprios salários, de R$ 11.564,76 para R$ 20.042,34 – um incremento de mais de 73%. O aumento teve 36 votos a favor e 11 contrários. Votaram contra a bancada do PT, que tinha apresentado uma emenda prevendo reajuste menor, e o deputado Cássia Carpes (PTB). Os parlamentares elevaram seus salários ao teto, previsto em lei, de 75% do salário dos deputados federais. Na semana passada, em Brasília, estes últimos aprovaram reajuste de cerca de 61% nos seus proventos, chegando a um salário de R$ 26.723,13.
O Projeto de Lei partiu da Mesa Diretora. A bancada do PT propôs uma emenda prevendo que o reajuste tivesse como base os do salário mínimo nos últimos quatro anos, período em que o subsídio dos deputados gaúchos ficou estagnado. Se aprovada esta emenda, o salário dos deputados seria de R$ 15.521,06 a partir de fevereiro de 2011 e teria novo reajuste, também baseado no salário mínimo, no início de 2013.
Bruno Alencastro/Sul21
Deputado Raul Pont / Foto: Bruno Alencastro/Sul21

“Queremos estabelecer o valor (dos salários) a partir de dados que servem tanto para nós quanto para qualquer categoria”, manifestou o deputado Raul Pont (PT) na tribuna. O parlamentar demonstrou preocupação com o “efeito cascata”, causado pelos reajustes, aprovados em Brasília. Assim como os deputados estaduais fixam o seu teto salarial com base no dos deputados federais, os vereadores, mesmo os das pequenas cidades, definem seus salários baseados nos subsídios dos parlamentares estaduais. “O teto de 75% do salário dos deputados federais não pode ser confundido com um indexador. Como o nosso aumento também não deve servir de indexador para os reajustes nas Câmaras de Vereadores”, afirmou Pont.
Os deputados Adão Villaverde (PT) e Cássia Carpes (PTB) ressaltaram a necessidade de reajuste de seus salários e lembraram que há uma defasagem entre os proventos dos parlamentares e o de categorias semelhantes do Judiciário. Apesar disso, manifestaram-se contra o reajuste de mais de 73%. “É preciso diminuir a diferença entre os maiores salários e os menores e considerar as dificuldades do estado em remunerar outras categorias”, disse Villaverde. “Aumento de (cerca de) 75% acho demais”, resumiu Cassiá.
Bruno Alencastro/Sul21
Deputado Adão Villaverde / Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Ninguém subiu à tribuna para defender o reajuste mais alto. Apesar disso, o Projeto de Lei foi aprovado, o que prejudicou a emenda proposta pelo PT, fazendo com que ela nem sequer fosse votada.
Defesa do aumento
“Todas as carreiras merecem ganhar bem, inclusive os deputados”, disse o deputado estadual Luis Fernando Záchia (PMDB), ressaltando que não votou aumento para si mesmo, já que não foi reeleito. Ele também afirmou que há um desequilíbrio entre os salários pagos aos deputados, menores que os de funções de importância semelhante no Executivo e no Judiciário, e questionou a proposta do PT. “Não vi (deputados petistas) questionarem os aumentos nos subsídios do Judiciário”, afirmou.
O deputado Alceu Moreira (PMDB), que foi eleito deputado federal, afirmou que seria incoerente de sua parte votar contra o reajuste e, ao mesmo tempo, receber o aumento já aprovado em Brasília a partir do ano que vem. Ele também afirmou que é preciso repensar o modo como é reajustado o salário dos parlamentares, porque há um “desgaste enorme” da imagem dos deputados perante à população cada vez que é votado um reajuste. Moreira fez ainda eco ao que disse Záchia, lembrando que carreiras do Judiciário têm bem mais benefícios que os parlamentares. O peemedebista também disparou contra a proposta do PT: “É demagógica, eles deveriam doar para caridade o aumento que irão receber”.
O deputado Gilberto Capoani, também do PMDB, ressaltou que o reajuste está “dentro do limite” constitucional. “É um salário justo, um salário digno, o que todos os servidores também merecem receber”. Capoani discorda da preocupação de Raul Pont com o “efeito cascata” que será desencadeado nas Câmaras Municipais do estado. “Não há perigo nenhum de ter um rombo, pois as Câmaras também têm um limite previsto em lei”.
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Deputado Raul Carrion / Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Para o deputado Raul Carrion (PC do B), há uma “anomalia”, uma distorção entre os salários dos deputados e de outras carreiras. “O teto do MP é de R$ 24 mil, o teto do funcionalismo do Executivo é de R$ 24 mil, até mesmo o teto dos funcionários da Assembleia é maior que o salário dos deputados”, afirma. O deputado defende: o salário aprovado hoje (21) não é exagerado para a responsabilidade que o cargo exige. “O que há é uma distorção na sociedade, salários muito baixos. Em contrapartida, a iniciativa privada também paga, em determinadas funções, salários bem mais altos que os pagos pelo Poder Público”.
Carrion afirma ser “parceiro” para que se evite uma bola de neve, com determinadas carreiras conseguindo aumentos e outras indo no embalo. “Eu sou parceiro para equiparar os salários e depois congelar, mas a maioria dos deputados considera isto complicado”.

“Salário mínimo é um padrão justo”

O deputado petista Daniel Bordignon (PT) explicou que o partido defendeu o que considera uma “bandeira de esquerda”: “Defendemos a diminuição entre os maiores e os menores salários. Não é razoável que ganhemos mais de 30 vezes o valor do salário mínimo. O reajuste do salário mínimo é um padrão justo para o reajuste dos parlamentares. Não há justificativa para um aumento de 70%. A inflação neste período (de quatro anos) foi de 30%”.
Bordignon rebate a acusação de que a proposta do PT seria demagógica. “Quem acha que era demagógica que votasse conosco, aí ela seria aprovada. Nós é que teríamos motivos para atacá-los”.
Bruno Alencastro/Sul21
Deputados gaúchos votam aumento de salário /Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Quanto à equiparação entre salários do Legislativo e do Judiciário, Bordignon garante que a bancada petista tem sido a mais atuante em barrar os aumentos propostos por magistrados, procuradores, entre outras carreiras. Ele cita que, em 2010, a bancada do seu partido se opôs a um aumento de 8% dos proventos dos desembargadores e também a um aumento para promotores do Ministério Público.
O petista afirma que o aumento dos salários pode prejudicar as contas do Executivo, mesmo que a AL tenha orçamento próprio. “A fonte é a mesma, se faltar aqui (na Assembleia), tem que tirar do Executivo. E se sobrar aqui, fica para o Executivo utilizar”.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Em defesa do santo direito à greve neste Natal

Passamos horas na sala de embarque do aeroporto esperando Godot. E Godot parece nunca chegar.
Nessas horas, tenho a certeza que a Infraero resolve economizar até no ar condicionado.
A espera, o calor… O tumulto, o calor… A desinformação, o calor… A fome, o calor… Lembro quando, anos atrás, durante o ápice do caos aéreo, rolaram tapas entre passageiros e funcionários, entre passageiros e passageiros. Um funcionário-descontrolado chegou a tomar o celular de uma repórter-passageira que registrava um coronel-suado dando explicações. Sobre o que? Na época, não deu para ouvir. Muita gente…
Cansei de contar o número de vezes, nos últimos anos, em que me lasquei por conta dos grandes ou pequenos momentos de caos. Muita gente ao meu lado jogou videogame, Sudoku, navegou na internet, cochilou, namorou, comeu, reclamou, esperando Godot. E Godot nem tchum.
Não culpo os aeroviários e controladores de vôo. Nos últimos anos, constatamos o quanto a situação deles é desesperadora, muitos com jornada de trabalho que extrapola o limite da regulamentação da profissão, sob imposição de estresse, sofrendo pressão do patrão de uma lado e da sociedade de outro. O setor cresce economicamente, nada mais justo que a remuneração também.
(Como não estamos mais nos primórdios da revolução industrial, não faz mais sentido jogar tamancos – do francês, sabots – nas engrenagens para paralisar a produção e se fazer ouvir. Há formas mais modernas, mas com o mesmo efeito. A idéia da paralisação e da grave também é essa.)
Começam a chamar uma possível paralisação de trabalhadores de terrorismo. Terrorismo não é parar de trabalhar. Terrorismo é fazer a população ficar contra um grupo de trabalhadores, enquanto se encobre as incompetências do setor privado, que cresce e não quer gastar para se adaptar a essa nova realidade, e do poder público, que acumulada inação na área por vários presidentes da República.
Durante anos, a “modernização” do sistema aéreo esbanjou dinheiro em piso de granito de aeroportos. À medida em que o capital fixo crescia (o visível, porque radar para eliminar “ponto cego” nem pensar), o capital variável (salários) continuava insuficiente para o nível de exigência das profissões.
Apóio os aeroviários e os controladores de vôo. Apóio os cobradores e motoristas de ônibus. Apóio os bancários e metalúrgicos. Apóio os garis. Apóio os residentes médicos. Apóio o santo direito de se conscientizarem, reconhecerem-se nos problemas, dizer não à exploração e entrar em greve até que a sociedade pressione e os patrões escutem.
Mesmo que isso torne minha vida um absurdo.
Mesmo que Godot nunca chegue.

O debate dos blogueiros progressistas do Rio



Miguel do Rosario em seu blog Gonzum
Os blogueiros progressistas do Rio de Janeiro continuam botando a mão na massa e trabalhando. No dia 18 de dezembro, um sábado quente e modorrento, a uma semana do Natal, conseguimos reunir mais de sessenta pessoas, inclusive de outros estados, inclusive os guerreiros da Rede Liberdade, para um debate sobre a função política da blogosfera à luz da nova correlação de forças criada pela eleição de Dilma Rousseff. Organizamos tudo na marra, sem patrocínio. Eu, um reles blogueiro desempregado, botei uma boa grana do próprio bolso; e não só eu, vários outros companheiros o fizeram; como sempre a blogosfera demonstrou generosidade, idealismo e disposição para fazer acontecer. Valeu a pena. É o tipo de investimento que você faz com orgulho. Alugamos o auditório do Sindicato dos Bancários, que possuía um bom sistema de ar-condicionado e bebedouro com água mineral (fatores fundamentais nessa época do ano no Rio…), compramos garrafas térmicas para servir café, chocolate, amendoins, biscoitinhos doces e salgados. Não tem preço ficar de frente, tocar e abraçar aqueles idealistas, de olhos bondosos e puros, que outros chamam de “sujos” e que agora alguns tentam destruir a golpes de pedantismo.
Houve problemas com o som e com a internet. Um companheiro nosso que deveria trazer o som, não o fez, e tivemos que falar sem microfone, o que não foi problema por se tratar de um auditório com excelente acústica. Também não foi possível fazer a transmissão online via internet, igualmente por incompetência nossa, que nos esforçaremos para que não se repita em eventos futuros.
Fabiano Santos, um cientista político de primeira grandeza, do Iupesp-UERJ, abriu o debate com uma brilhante exposição sobre o momento político brasileiro. Relatou, em primeiro lugar, como mergulhou de cabeça na blogosfera, após sentir-se ofendido com matéria publicada num grande jornal do Rio, que atacava o instituto onde ele trabalhava, o Iuperj. Passou a ser um consumidor de blogs, começando pelo do Nassif.
Fabiano Santos elogiou o termo “progressista”, conceito que, segundo ele, contava com sua total simpatia, como aliás deixou claro ao aceitar prontamente o convite que lhe fiz de participar do evento e pela seriedade com que desempenhou sua tarefa. O cientista elogiou muito a contribuição dos blogueiros progressistas no sentido de ampliar o debate democrático no país.
Santos analisou a função da blogosfera política nas eleições e discorreu sobre as perspectivas eleitorais futuras. Uma das funções seria a reiteração ideológica, onde o indivíduo encontraria em alguns blogs uma visão parecida. Este fator, segundo ele, tem relevância política porque fornece argumentos e autoconfiança para um determinado núcleo duro, de pessoas interessadas no assunto, que são procuradas pela maioria, que apenas se interessa por política durante o momento eleitoral.
Outra função, que seria a ideal, seria a de persuadir, e eventualmente mudar o voto de uma pessoa.
Santos disse acreditar, no entanto, que a primeira função seria mais comum na blogosfera de esquerda atual.
Em seguida, ele fez considerações de ordem propriamente política-eleitoral-partidária. Lembrou a tese de seu pai, Wanderley Guilherme dos Santos, de que há uma possiblidade forte de união entre Aécio Neves e lideranças do PSB, e mesmo de outros partidos, sobretudo porque muitos estão se sentindo “órfãos” na divisão de poder entre PT e PMDB. Lembrou que da mesma forma que o PT se aliou ao PL, o PSB pode se aliar ao PSDB. A diferença (e aqui vai minha opinião, embora eu ache que o Fabiano concordaria com ela) é que, no caso da dupla PT X PL, a esquerda vinha na cabeça, enquanto a chapa PSDB X PSB teria um perfil hegemonicamente conservador.
Respondendo a uma pergunta minha, Santos apontou mais um desafio para a esquerda: lidar com o avanço das bandeiras conservadoras gerado pela ascensão social de um número grande de pessoas. A partir do momento em que se amplia o tamanho da classe média, outras demandas se impõem, entre elas, a discussão sobre a carga tributária.
Santos observou, todavia, que esses dilemas, hoje muito prementes entre a esquerda européia (onde a classe trabalhadora que votava na esquerda hoje vota na direita pelas mesmas razões), ainda demorarão a se tornar tão aguçados no Brasil. Observação minha: não vão demorar tanto, ainda mais porque a mídia já identificou esses possíveis ponto-fracos da esquerda e vem trabalhando com afinco para satanizar a cobrança de impostos (o que não é difícil, visto que ninguém gosta de pagar imposto; de maneira que a pregação tem um quê de irresponsabilidade republicana, bem típica do tipo de direita que temos no Brasil). Outra observação é que isso é processo político normal e inevitável e se a esquerda não souber enfrentar essa luta com sabedoria, merecerá a derrota.
O cientista disse ainda que a imprensa grande é conservadora no mundo inteiro, com raras exceções. Eu lembrei das exceções: França e Itália, onde temos grande imprensa de esquerda, mas em todos os países americanos, mídia grande é ligada aos partidos conservadores.
Bemvindo Sequeira falou em seguida. Lembrou do tempo em que foi diretor do sindicato dos artistas, e sofria na mão de uma ultra-minoria ultra-esquerdista que sabotava sistematicamente as convenções, forçando as melhores cabeças a irem embora para casa, depois do que eles assumiam as votações e aprovavam bandeiras radicais, inconvenientes e contraproducentes.
O ator contou a história do grupo Rede Liberdade, que promove encontros virtuais, entrevistas, festas, e outros eventos.
Sequeira, como era de se esperar, extraiu fortes risadas da plateia com sua irreverência livre e inteligente. Socialista maduro, responsável, positivamente astuto, o ator e comediante também fez uma bela defesa da liberdade de expressão nos debates políticos, ou seja, do não-patrulhamento, e a tolerância para com a opinião divergente. A harmonia carinhosa entre ele, que defende a ação do governo estadual e federal no Complexo do Alemão, e o cartunista Latuff (a seu lado na mesa), que a critica ferinamente, era um exemplo maravilhoso e concreto. É possível discordar sem rancor.
Latuff dedicou grande parte de seu tempo a criticar a ação do Estado no Complexo do Alemão. Apesar d’eu discordar dele, compreendo e até apoio (por mais paradoxal que isso possa parecer) a manifestação de Latuff. De fato, a mídia produziu um consenso assustador nesse caso. O Globo deixou bem claro o que pode fazer quando “gosta” de uma determinada ação governamental: abraça-a com a mesma violência manipuladora e exagerada que usa para atacar ações que não gosta. Mesmo apoiando a ação, eu adverti por aqui a minha profunda discordância do tom salvacionista adotado pela Globo para descrever a ação.
O fato, porém, é que os principais movimentos sociais ligados às favelas apoiaram a invasão do Alemão pelo exército e polícia, mas todos tivemos muito medo de uma carnificina e por isso mesmo houve uma grande mobilização para que fosse tomado extremo cuidado para com os direitos humanos. A própria presença maciça dos canais de tv ajudou a evitar um banho de sangue. A mídia, conservadora ou não, é importante neste caso, porque permite à sociedade vigiar de perto o poder público.
Depois do evento, uma parte dos blogueiros progressistas confraternizaram no Bar do Gomes, na Lapa, que eu e meus amigos chamamos ainda pelo nome antigo: o Ceará. Rodrigo Brandão, Arles, Rô, Latuff, o Betinho de BH, e vários outros. Havia um objetivo de confabular sobre o Encontro Regional, mas a gente usou o tempo para falar genericamente de política, relembrar anedotas, trocar impressões, ou simplesmente falar besteira.
O Emir Sader, que participaria do debate, mas não pode fazê-lo por estar em Foz do Iguaçu, num evento de lideranças da América Latina, mandou-nos uma cartinha:
Caros blogueiros, caros companheiros e amigos
Impossibilitado de participar desse importante debate, mando um abraço a todos. Terminamos um ano e uma década muito importantes para o Brasil e a América Latina. Começamos a construir alternativas ao neoliberalismo – ao reino do dinheiro, do tudo se vende, tudo se compra, e, que tudo tem preço – para começar a entender e a colocar em prática o principio democratico de que o essencial não tem preço. E o essencial são os direitos de todos.
No plano da comunicação, nossa ação guerrilheira surte efeitos e nos anima a seguir adiante. Mas não devemos ter ilusões; lutamos contra Exércitos regulares, com um poder de fogo muito superior ao nosso.
Estamos coseguindo demonstrar a superioridade politica, cultural e moral, do plurairismo, da diversidade, da multiplicação de vozes – princípios em que deve se assentar uma politica democrática de comunicação social.
Com debates como esse, vamos estabelecendo os elos desse nova politica.
Sou apenas mais um da nossa turma.
Um abraço.
Emir Sader
A Rede Liberdade já postou muitas fotos do evento. Escolhi umas e publico abaixo (repetindo: o crédito das fotos é da Rede Liberdade).
(em primeiro plano, à esquerda, o artista plástico Juliano Guilherme, combatente da blogosfera na área de comentários, de camiseta azul; e Sérgio Telles, à direita, de camiseta bege, um dos organizadores do debate do #rioblogprog. Betinho Duarte, vereador por 16 anos em Belo Horizonte, aparece à direita, de camiseta branca. Detalhe: o resto do público assistia a palestra junto a mesa do bufê, onde tinha café e quitutes; uma parte ia fumar cigarro do lado de fora de vez quando; outra fica na janela).
(À esquerda, eu, despenteado e barba por fazer, ou seja, fantasiado de blogueiro sujo; à direita, Fabiano Santos, cientista político do Iupesp).
(Parte do núcleo duro do #rioblogprog, em foto tirada ao final do debate).

Descontente com PDT, Juliana Brizola assina CPI da Saúde e ameaça ir para o PSol



Igor Natusch no Sul21

O requerimento para instalação da CPI da Saúde em Porto Alegre é mais um episódio a marcar o clima tenso que tomou conta da relação de Juliana Brizola com o PDT, o partido criado pelo seu avô, Leonel Brizola. Protocolado na tarde desta segunda-feira (20), o pedido de investigação foi proposto pela oposição ao governo da capital, comandado por José Fortunati (PDT). Até a manhã de hoje, faltava uma única assinatura para viabilizar a CPI – ela acabou sendo dada por Juliana Brizola, contra os interesses do próprio partido. Curiosamente, a 12ª assinatura, a de Juliana, que permitiu a tramitação na Câmara Municipal do pedido da CPI da Saúde, foi justamente a que faltou para que a vereadora conseguisse a instauração de outra Comissão Parlamentar de Inquérito: a da Secretaria Municipal da Juventude. A CPI do ProJovem, que tramita na Casa, foi encaminhada pelo vereador tucano Luiz Braz, da base aliada de Fortunati.
Mais do que uma represália contra o que Juliana considera uma “perseguição” do seu partido, a atitude da vereadora, que ocupará uma cadeira na Assembleia gaúcha a partir de 2011, é um sinal de que a detentora do sobrenome que personifica o trabalhismo está disposta a bater de frente com o partido de seu avô. Há a possibilidade crescente de Juliana Brizola partir de mala e cuia para outra sigla – no caso, o PSol.
A proposta de CPI para apurar denúncias sobre a Secretaria Municipal de Saúde existe desde janeiro de 2010. Em abril, já haviam sido coletadas 11 das doze assinaturas necessárias para o andamento da investigação. A última assinatura só surgiria hoje, com a concordância de Juliana em opor-se ao governo de seu partido. “Ela era favorável à CPI (da Saúde) desde o início”, garante o vereador de Porto Alegre, Pedro Ruas (PSol), que deu início ao processo. Segundo ele, a pressão partidária impedia que Juliana assinasse o requerimento. Barreira que teria deixado de existir depois da polêmica envolvendo a investigação da Secretaria de Juventude. “Com os últimos acontecimentos, a vereadora (Juliana Brizola) não se sente mais presa às imposições de seu partido, o que a deixou muito mais à vontade para assinar (a CPI)”, garante Ruas. Agora, a CPI da Saúde fica no aguardo de parecer da presidência da Câmara.
Tentando apagar o incêndio, lideranças trabalhistas acenam com uma solução conciliadora. Juliana Brizola poderia, de acordo com a proposta da bancada do PDT, assumir a Comissão de Educação na Assembleia Legislativa a partir de 2011. Seria um modo de diminuir a insatisfação da deputada eleita, que não apenas ostenta um sobrenome muito importante para a sigla, como teve também a melhor votação da bancada trabalhista nas eleições de outubro. Uma reunião da bancada pedetista está marcada para terça-feira (21), na qual Juliana Brizola deve estar presente. Entre outros assuntos, o encontro deve consolidar a oferta da Comissão de Educação, como meio de acabar com as rusgas entre Juliana e a sigla.
“O lugar dela é no PDT”, diz o deputado Adroaldo Loureiro, que será colega de Assembleia de Juliana Brizola a partir de 2011. Frisando que a futura deputada merece ser “bem tratada” pelo partido, Loureiro diz crer que a tendência, daqui para frente, é que as coisas se acalmem. “Foi um ano muito complicado, cheio de conflitos dentro do partido, e isso acabou tendo influência. Além disso, ela será deputada, estará em outro ambiente a partir do ano que vem. Acredito que teremos um clima mais favorável ao entendimento daqui para frente”, assegura.
Briga antiga
A insatisfação de Juliana é assunto que se arrasta há anos nos corredores do PDT. Os choques entre a atual vereadora e a direção estadual da sigla foram tantos que motivaram até uma denúncia por assédio sexual contra o então presidente do partido no RS, Pompeo de Mattos, em 2004. Nas articulações para definir o apoio dos trabalhistas ao governo de Tarso Genro (PT), Juliana Brizola foi uma das vozes mais fortes contra a participação, mas acabou sendo voto vencido. Nos últimos dias, a situação ganhou tamanha dimensão que até o presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, aproveitou viagem ao RS para tentar acalmar os ânimos.
As rusgas entre Juliana e o PDT tiveram uma gota d’água na recente proposta de uma CPI para investigar a Secretaria Municipal da Juventude, da qual foi titular. A pasta, até a explosão da polêmica, era comandada pelo marido de Juliana, Alexandre de Souza Silveira, conhecido como Alexandre Rambo. Rebatendo denúncias contra o marido, as quais ela atribui a uma armação comandada pelo desafeto Mauro Zacher (PDT), que também esteve à frente da Secretarua da Juventude, Juliana propôs a abertura de uma comissão processante para investigar as últimas administrações da pasta. Porém, seu pedido foi negado pela presidência da Casa, baseada num parecer da procuradoria-geral da Câmara.
Juntamente com a vereadora Fernanda Melchionna (PSol), Juliana entrou com um recurso, encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça, onde teve parecer favorável do presidente da CCJ e relator do recurso, vereador Pedro Ruas. O vereador Luiz Braz (PSDB), no entanto, pediu vistas e a decisão foi adiada por um dia. Tempo suficiente para Braz assinar um novo pedido de CPI para investigar a secretaria.
Ao perceber a manobra, Juliana Brizola tentou ela mesma substituir o pedido de abertura de uma comissão processante pelo de uma CPI. No entanto, não obteve as 12 assinaturas necessárias, enquanto a Comissão proposta por Luís Braz, com 14 assinaturas, foi aceita pelo presidente da Câmara de Porto Alegre, Nelcir Tessaro (PTB). Na prática, o controle da investigação saiu das mãos da oposição – e, em última análise, de Juliana Brizola – e passou para o controle de setores muito mais simpáticos a José Fortunati e ao governo municipal. “Fui desrespeitada na minha pretensão de ingressar com a CPI e, agora, o pedido de outro vereador é aceito em lugar do meu. A mesa não pode aceitar esse pedido. É uma questão de autoria”, disse Juliana, em entrevista coletiva logo após a decisão.
Vereadores Fernanda Melchionna e Pedro Ruas / Divulgação CMPA

Conversas com o PSol
A aproximação de Juliana Brizola com o PSol vem sendo costurada há alguns meses. Nas sessões da Câmara municipal, era comum ver a futura deputada ao lado de Pedro Ruas e Fernanda Melchionna, representantes psolistas no legislativo de Porto Alegre. A migração, embora de forte repercussão, não seria inédita, já que o próprio Pedro Ruas deixou os quadros trabalhistas em 2004, depois de 25 anos na sigla, para entrar no PSol.
As conversas entre Juliana e o PSol tomaram tal dimensão que a vereadora, acompanhada de Pedro Ruas e do presidente gaúcho do PSol, Roberto Robaina, dirigiu-se até o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) na quarta-feira passada (15) para um encontro com o presidente do Tribunal, Luiz Felipe Silveira Difini. O tema da conversa: eventuais implicações de uma mudança de partido sobre o recém conquistado mandato na Assembleia do RS. A ideia, no caso, seria de Juliana Brizola tomar posse ainda como pedetista. Com o mandato já em andamento, a deputada alegaria perseguição ou rompimento do PDT com o programa partidário para migrar de sigla – o que, caso aceito pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), garantiria a entrada no PSol sem que Juliana precisasse abrir mão do mandato.
Segundo o vereador Pedro Ruas (PSol), a discussão ainda está em um estágio “muito preliminar”. Mas confirma a aproximação entre Juliana Brizola e o partido. “Sempre houve um grande respeito nosso pela trajetória dela, além de estarmos sempre muito próximos na atuação de plenário. Para nós (PSol), seria uma honra muito grande recebê-la, caso as coisas evoluam. Mas ainda não há nada concreto”, ressalva.
Sem entrar no mérito de uma possível entrada de Juliana Brizola no PSol, a vereadora Fernanda Melchionna (PSol) lembra que os recentes acontecimentos deram “maior independência” às decisões da futura deputada estadual. “A vereadora Brizola não encontra mais espaço dentro do partido ao qual pertence. O PDT distanciou-se das bandeiras que ela defende, e ela acabou ficando isolada. Isso fez com que ela se aproximasse de nós (PSol) na Câmara, já que abraçamos várias lutas em comum”, explica Melchionna.
Adroaldo Loureiro, porém, descarta a hipótese com veemência. “Isso não passa de boato, não tem a menor sustentação”, diz. Para ele, não existiria nem sequer uma “lógica política” para sustentar essa possibilidade. “Ela carrega consigo o legado do doutor Leonel Brizola, fundador e grande líder do PDT. Não existe motivos para ela sair, aqui é a casa dela. Nós (deputados estaduais) vamos receber ela de braços abertos e com muita alegria”.
O Sul21 tentou conversar com Juliana Brizola durante toda a tarde desta segunda-feira (20), mas a vereadora não retornou as ligações. A assessoria de Juliana informou que a futura deputada havia decidido não falar com a imprensa.

Dez conselhos para viver a religião



1. Religue-se. Evite o solipsismo, o individualismo, a solidão nefasta. Religue-se ao mais profundo de si mesmo, lá onde se cultivam os bens infinitos; à natureza, da qual somos todos expressão e consciência; ao próximo, de quem inevitavelmente dependemos; a Deus, que nos ama incondicionalmente. Isto é religião, re-ligar.
2. Tenha presente que as religiões surgiram na história da humanidade há cerca de oito mil anos. A espiritualidade, porém, é tão antiga quanto a própria humanidade. Ela é o fundamento de toda religião, assim como o amor em relação à família. Busque na sua religião aprimorar a sua espiritualidade. Desconfie de religião que não cultiva a espiritualidade e prioriza dogmas, preceitos, mandamentos, hierarquias e leis.
3. Verifique se a sua religião está centrada no dom maior de Deus: a vida. Religião centrada na autoridade, na doutrina, na ideia de pecado, na predestinação, é ópio do povo. “Vim para que todos tenham vida e vida em abundância”, disse Jesus (João 10,10). Portanto, a religião não pode manter-se indiferente a tudo que impede ou ameaça a vida: opressão, exclusão, submissão, discriminação, desqualificação de quem não abraça o mesmo credo.
4. Engaje-se numa comunidade religiosa comprometida com o aprimoramento da espiritualidade. Religião é comunhão. E imprima à sua comunidade caráter social: combate à miséria; solidariedade aos pobres e injustiçados; defesa intransigente da vida; denúncia das estruturas de morte; anúncio de um “outro mundo possível”, mais justo e livre, onde todos possam viver com dignidade e felicidade.
5. Interiorize sua experiência religiosa. Transforme o seu crer no seu fazer. Reduza a contradição entre a sua oração e a sua ação. Faça pelos outros o que gostaria que fizessem por você. Ame assim como Deus nos ama: incondicionalmente.
6. Ore. Religião sem oração é cardápio sem alimento. Reserve um momento de seu dia para encontrar-se com Deus no mais íntimo de si mesmo. Medite. Deixe o Espírito divino lapidar o seu espírito, desatar os seus nós interiores, dilatar sua capacidade amorosa.
7. Seja tolerante com as outras religiões, assim como gostaria que fossem com a sua. Livre-se de qualquer tendência fundamentalista de quem se julga dono da verdade e melhor intérprete da vontade de Deus. Procure dialogar com aqueles que manifestam crenças diferentes da sua. Quem ama não é intolerante.
8. Lembre-se: Deus não tem religião. Nós é que, ao institucionalizar diferentes experiências espirituais, criamos as religiões. Todas elas estão inseridas neste mundo em que vivemos e mantêm com ele uma intrínseca interrelação. Toda religião desempenha, na sociedade em que se insere, um papel político, seja legitimando injustiças, ao se manter indiferente a elas, seja ao denunciá-las profeticamente em nome do princípio de que somos todos filhos e filhas de Deus. Portanto, temos o direito de fazer da humanidade uma família.
9. A árvore se conhece pelos frutos. Avalie se a sua religião é amorosa ou excludente, semeadora de bênçãos ou arauto do inferno, serva do projeto de Deus na história humana ou do poder do dinheiro.
10. Deus é amor. Religião que não conduz ao amor não é coisa de Deus. Mais importante que ter fé, abraçar uma religião, frequentar templos, é amar. “Ainda que eu tivesse fé capaz de transportar montanhas, se não tivesse o amor isso de nada me serviria”, disse o apóstolo Paulo (1 Coríntios 13, 2). Mais vale um ateu que ama que um crente que odeia, discrimina e oprime. O amor é a raiz e o fruto de toda verdadeira religião; e a experiência de Deus, de toda autêntica fé.

* Escritor

A barreira da desigualdade



Sem erradicar a pobreza e a marginalização social, é impossível fazer funcionar regularmente o regime democrático


Ideias para Dilma
A ligação entre democracia e direitos humanos é visceral, pois trata-se de realidades intimamente correlacionadas. Sem democracia, os direitos humanos, notadamente os econômicos e sociais, nunca são adequadamente  respeitados, porque a realização de tais direitos implica a redução  substancial do poder da minoria rica que domina o País. Como ninguém pode desconhecer, sem erradicar a pobreza e a marginalização social, com a concomitante redução das desigualdades sociais e regionais, como manda a Constituição (art. 3º, III), é impossível fazer funcionar regularmente o regime democrático, pois a maioria pobre é continuamente esmagada pela minoria rica.

Acontece que o nosso País continuar a ostentar a faixa de campeão da desigualdade social na América Latina, e permanece há décadas entre os primeiros colocados mundiais nessa indecente competição. Em seu último relatório, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano (PNUD) mostrou que os setores de mais acentuada desigualdade social, no Brasil, são os de rendimento e educação.

É óbvio que essa realidade deprimente jamais será corrigida simplesmente com a adoção de programas assistenciais do tipo Bolsa Família. Trata-se de um problema global, ligado à estrutura de poder na sociedade. Para solucioná-lo, portanto, é indispensável usar de um remédio também global. Ele consiste na progressiva introdução de um autêntico regime republicano e democrático entre nós. Ou seja, no respeito integral à supremacia do bem comum do povo ( a res publica romana) sobre o interesse próprio das classes e dos grupos dominantes e seus aliados. Ora, se a finalidade última do exercício do poder político é essa, fica evidente que ao povo, e a ele só, deve ser atribuída uma soberania efetiva e não meramente simbólica, como sempre aconteceu entre nós.

Para alcançar esse desiderato, é preciso transformar a mentalidade dominante, moldada na passiva aceitação do poder oligárquico e capitalista. O que implica um esforço prolongado e metódico de educação cívica.

Concomitantemente, é indispensável introduzir algumas instituições de decisão democrática em nossa organização constitucional. Três delas me parecem essenciais com esse objetivo, proque provocam, além do enfraquecimento progressivo do poder oligárquico, a desejada pedagodia política popular.

A primeira e mais importante consiste em extinguir o poder de controle, pelo oligopólio empresarial, da parte mais desenvolvida dos nossos meios de comunicação de massa. É graças a esse domínio da grande imprensa, do rádio e da televisão, que os grupos oligárquicos defendem, livremente, a sua dominação política e econômica.

O novo governo federal deveria começar, nesse campo, pela apresentação de projetos de lei que deem efetividade às normas constitucionais proibidoras do monopólio e do oligopólio dos meios de comunicação de massa, e que exigem, na programação das emissoras de rádio e televisão, seja dada preferência a finalidades educativas, artísticas e informativas, bem como à promoção da cultura nacional e regional.

A esse respeito, já foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal algumas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão. É de se esperar que a nova presidenta, valendo-se do fato de que o Advogado-Geral da União é legalmente “submetido à sua direta, pessoal e imediata supervisão”( Lei Complementar n˚ 73, de 1993, art.3˚, § 1°), dê-lhe instruções precisas para que se manifeste favoravelmente aos pedidos ajuizados. Seria, com efeito, mais um estrondoso vexame se a presidenta eleita repetisse o comportamento do governo Lula, que instruiu a Advocacia-Geral da União a se pronunciar, no Supremo Tribunal Federal, a favor da anistia dos assassinos, torturadores e estupradores do regime militar.

As outras duas medidas institucionais de instauração da democracia entre nós são: 1. A livre utilização, pelo povo, de plebiscitos e referendos, bem como a facilitação da iniciativa popular de projetos de lei e a criação da iniciativa popular de emendas constitucionais. 2. A instituição do referendo revocatório de mandatos eletivos (recall), pelos quais o povo pode destituir livremente aqueles que elegeu, sem necessidade dos processos cavilosos de impeachment.

Salvo no tocante à iniciativa popular de emendas constitucionais, já existem proposições em tramitação no Congresso Nacional a esse respeito, redigidas pelo autor destas linhas e encampadas pelo Conselho Federal da OAB: os Projetos de Lei n˚ 4.718 na Câmara dos Deputados e n˚ 001/2006 no Senado Federal, bem como a proposta de Emenda Constitucional n˚ 26/2006, apresentada pelo senador Sérgio Zambiasi, que permite a iniciativa popular de plebiscitos e referendos.

Mas não sejamos ingênuos. Todos esses mecanismos institucionais abalam a soberania dos grupos oligárquicos e, como é óbvio, sua introdução será por eles combatida de todas as maneiras, sobretudo pela pressão sufocante do poder econômico. Se quisermos avançar nesse terreno minado, é preciso ter pertinácia, organização e competência.

Está posto, aí, o grande desafio a ser enfrentado pelo futuro governo federal. Terá ele coragem e determinação para atuar em favor da democracia e dos direitos humanos, ou preferirá seguir o caminho sinuoso e covarde da permanente conciliação com os donos do poder?

É a pergunta que ora faço à presidenta eleita.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Usinas Hidrelétricas aceleram ‘territorialização corporativa’ da Amazônia

Escrito por Luis Fernando Novoa Garzon no Correio da Cidadania  
 
A análise e o acompanhamento das transformações observáveis ao longo da implementação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira (RO) são cruciais no sentido de testar as metodologias, procedimentos e indicadores que têm sido apresentados como um "novo paradigma" de construção de grandes UHEs na Amazônia, que irá nortear a expansão da fronteira elétrica na região. Durante a fase prévia do licenciamento dos empreendimentos, o conjunto de incertezas, técnica e socialmente identificadas, para a população e o meio ambiente, foi certificado como válido e passível de monitoramento.
 
Na fase de instalação, subseqüentemente, os consórcios obtiveram plena discricionariedade para impor seus cronogramas físico-financeiros, independentemente da execução plena e prévia dos programas compensatórios e mitigatórios.
 
Na região do município de Porto Velho (RO) e adjacências, configurou-se, a partir do início das obras das Usinas Hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio no rio Madeira, a partir de 2008, uma dinâmica social de novo tipo, com descontinuidades intensificadas no espaço e no tempo, com efeitos assimétricos sobre os grupos sociais afetados. Esses efeitos são desproporcionais e diferenciados segundo a posição e o lugar relativo dos grupos sociais em relação à intervenção referida. Quanto mais vinculados ao ciclo do rio e de suas margens, maior a perda e dissipação de poder material e simbólico. Quanto mais instrumentalizados forem em função dos requisitos e do cronograma das duas obras, maior a invisibilidade e descartabilidade dos mesmos, incluindo a força de trabalho direta e indiretamente mobilizada pelas obras, bem como a população que vai engrossando as áreas peri-urbanizadas da cidade anfitriã dos dois mega-projetos.
 
Os danos sócio-econômicos, culturais e ambientais já consubstanciados na instalação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira constituiriam motivo suficiente, houvesse rigor proporcional na aplicação da legislação ambiental ao nível de classificação de risco dos empreendimentos, para a paralisação das obras e a subseqüente revisão não apenas de sua metodologia, cronograma, mas da própria viabilidade ambiental atribuída sob chantagem privada e coerção governamental. Para além das parcas medidas de compensação e mitigação previstas no licenciamento das duas obras, está em jogo nesse caso a plena autonomia conferida aos Consórcios titulares das novas concessões de aproveitamento hidrelétrico na Amazônia, para gerir o que eram antes considerados "bens públicos".
 
Com o intuito de consolidar a participação do setor privado (PSP) nas áreas de infra-estrutura, a ordem unida é a regulamentação desregulamentadora nas três esferas governamentais, bem como em todas as instâncias setoriais, creditícias e fiscalizadoras respectivas (Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, Agência Nacional de Águas, Ministério das Minas e Energia, ANEEL, BNDES, TCU). Flexibilidade institucional dirigida para o planejamento territorial corporativo e, subsequentemente, para o rebaixamento ainda maior dos patamares mínimos de direitos sociais e de salvaguardas ambientais.
 
O aplainamento do processo de licenciamento, de concessão e de financiamento desses dois aproveitamentos hidrelétricos no rio Madeira é uma derivação lógica da política de atração de investimentos para o setor de infra-estrutura, o cerne do PAC (Programa de Aceleração de Crescimento), lançado em 2007 e relançado como PAC 2, em 2010. Essa iniciativa, vista de forma superficial, seria tão somente um programa de execução de obras prioritárias, quando na verdade compreende também uma agenda de facilitações regulatórias e creditícias pró-mercado, através de reformas administrativas e setoriais nos órgãos e na legislação ambiental, bem como da reestruturação do BNDES. Essa conjunção materializada na emissão das Licenças Prévias e de Instalação das Usinas do rio Madeira e na viabilização de seus respectivos leilões fez surgir um novo e temerário paradigma de "licenciamento automático"(1). A instalação dessas usinas, na forma como se apresenta, equivale a um salvo-conduto institucional para a reabertura de um novo ciclo de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, em território brasileiro e transfronteiriço.
 
Já instalados os canteiros de obras das duas usinas, impôs-se a verificação de como a precarização e flexibilização de sua regulamentação vêm se refletindo na sua implementação efetiva. Procurou-se, por conseguinte, diante das lacunas processuais oficialmente internalizadas, avaliar a possibilidade mesma de se atestar, nessas condições, consistência e adequação das ações de remanejamento e as medidas de compensação e mitigação dos impactos previstos nas comunidades a montante das UHE de Jirau e Santo Antônio. Como é possível compensar o que nem sequer foi mensurado ou reconhecido como perda ou dano? Governo e empreendedores determinam, a partir das UHEs no rio Madeira, que subjetividades e direitos coletivos são passíveis de compra e venda.
 
Como concessões elétricas traduzem-se em cessões territoriais
 
O maleável regime de concessões do setor elétrico aplicado a grandes aproveitamentos hidrelétricos na Amazônia tem redundado em oficiosos processos de cessão, a grandes conglomerados privados, de porções territoriais estratégicas para o país. Tal como o Projeto Grande Carajás(PA), aprovado em 1982, o Projeto Complexo Madeira é que define a região que lhe cabe. Grandes Projetos de Investimentos (GPIs), ao gerarem espaços em função da máxima eficácia dos investimentos aportados neles, não poderiam deixar de planejar e gerir esses mesmos espaços.
 
Contudo, à diferença das décadas de 70 e 80, quando o regime militar procurava incorporar a Amazônia à estrutura produtiva do centro-sul do país por meio de obras viárias e de incentivos fiscais, a partir dos anos 90 o avanço da fronteira econômica na região passa a ser crescentemente dirigido por cadeias globais de valor. As mediações políticas derivadas de uma rígida divisão inter-regional do trabalho foram sendo substituídas por fórmulas territoriais flexíveis condizentes com as novas estratégias de deslocalização dos investimentos e ajustes espaciais consecutivos. O que não significa ausência de política ou do Estado, e sim seu pleno disciplinamento em coalizões privado-públicas, necessariamente nesta ordem. O que pode ser mais ativo, em termos político-operacionais, que medidas progressivas de liberalização comercial e flexibilização legal, além do empenho de estatais, bancos e fundos públicos e semi-públicos na formação de conglomerados empresariais com raio de atuação no Brasil e/ou a partir dele?
 
O Projeto Complexo Madeira, que se articula a outros projetos de interconexão de infra-estrutura no continente, serve de trampolim para impulsionar uma série de novos mega-projetos na Amazônia. A meta é estruturar e potencializar plataformas e corredores de exportação, com a disponibilização não só de energia hidrelétrica e recursos naturais conexos (terras, jazidas minerais, madeira e biodiversidade), mas da plasticidade territorial que se fizer necessária, ou for convidativa, aos conglomerados privados. Os arranjos empresariais resultantes são concomitantemente eleitos pelo Estado e eletivos das políticas setoriais deste. O novo planejamento territorial em operação na Amazônia paradoxalmente dinamiza nossas vantagens comparativas estáticas, em um processo de acumulação extensiva marcado por especializações regressivas em termos de agregação de valor e inovação tecnológica.
 
O compartilhamento jurisdicional empresas-Estado, da região do alto Madeira, teve início ainda na fase dos estudos ambientais do Complexo hidroelétrico. Procedeu-se em 2007 uma alteração regulamentar dos patamares de suficiência de comprovações técnicas e de compromissos públicos requeridos para atestar a viabilidade ambiental e social das duas usinas. O seu licenciamento a fórceps ensejou o desmanche como um todo do licenciamento ambiental nacional. O próprio órgão licenciador, o IBAMA, sofreu uma intervenção administrativa, em 2007, que além de fragmentar suas funções originais delimitou-as, retirando dele capacidade de vetar projetos considerados de "interesse nacional". Na análise do Estudo de Impacto Ambiental e de suas complementações, a cargo do então Consórcio Furnas-Odebrecht (hoje Santo Antônio Energia), identificamos as seguintes distorções e incongruências:
 
a) Minimização das áreas de impacto direto e indireto com a exclusão do território da Bolívia e das áreas a jusante.
 
b) Anulação da necessidade prévia dos estudos de bacia.
 
c) Adoção de metodologias e critérios de certificação que minimizam e mascaram os danos.
 
d) Definição arbitrária dos Consórcios dos próprios critérios de suficiência ou de insuficiência de estudos, e medidas mitigatórias e compensações decorrentes.
 
e) Aprovação das Licenças Prévias e de Instalação com condicionantes que procuram substituir o vazio de informação e de diagnóstico pelo monitoramento das incertezas, o que significa que os empreendedores adquiriam autonomia para definir os próprios parâmetros da instalação e operação das usinas.
 
Esses vícios de origem no processo de licenciamento das UHEs do rio Madeira reproduziram-se e desdobraram-se no momento de elaboração e de implementação dos Projetos Básicos Ambientais a cargo dos Consórcios Energia Sustentável do Brasil(ESBR) e Santo Antônio Energia (SAESA). Nos dois PBAs consta o princípio de que o empreendedor fica obrigado a recompor as condições de vida e das atividades produtivas na área diretamente afetada pelas obras e pela formação do reservatório. Em tese, a recomposição das atividades e da qualidade de vida, por meio de indenização justa ou do remanejamento, deveria se dar "em condições pelo menos equivalentes às atuais". O Programa de Remanejamento a cargo do Consórcio Santo Antonio Energia, por exemplo, reitera o compromisso de que se ofereça indenização ou processo de realocamento de modo que "todos os afetados deverão ter condições de ser remanejados para uma propriedade pelo menos equivalente" (2).
 
No entanto, não foram prescritos ou previstos indicadores, critérios e metas para que essa obrigação fosse cumprida, ou seja, sobre como seria essa "recomposição", com quais meios, recursos e prazos. O modelo de reassentamento em agrovilas estranhas às tradições comunitárias ribeirinhas, e ainda por cima localizadas em solos inférteis sem acesso ao rio e seus igarapés, constituiu uma via de mão única na "negociação" da realocação da população atingida. Cerceados pela contagem regressiva do despejo, cerca de 85% dos afetados submeteram-se ao instrumento da indenização ou da carta de crédito, proporção averiguada pelo próprio IBAMA(3). O que deveria ser exceção tornou-se regra, em termos de deslocamento compulsório, no decorrer da instalação das UHEs no rio Madeira. Modos de vida amazônicos singulares não deveriam ser levianamente contabilizados e sim protegidos e sustentados por políticas públicas que reconhecessem e valorizassem as múltiplas abordagens coletivas no trato do espaço e do tempo. A indenização exclusivamente monetária é uma amortização sumária dos compromissos sociais formalmente assumidos pelos Consórcios junto à população atingida, uma política oficial de erradicação de dezenas de comunidades ribeirinhas, agora entregues à sua própria sorte em novas frentes irregulares de ocupação urbana e rural.
 
O negligenciamento no cumprimento dos já rebaixados parâmetros sociais e ambientais se refletiu na falta de detalhamento das diretrizes constantes nos PBAs das UHEs de Jirau e Santo Antonio. Essa metodologia de auto-licenciamento depende de combinações nas múltiplas escalas de governo, o que implica em negociações cruzadas, paralelas ou oficiais, no uso das verbas de compensação social e rearranjos das contrapartidas federais, estaduais e municipais. Um complexo intercâmbio de interesses entre grupos econômicos globais e locais e suas representações políticas ocorre sob a conveniente fachada de "fornecimento de energia para o Brasil" e "geração de emprego e renda na região".
 
O processo de desterritorialização levado a cabo por grandes projetos de mineração na Amazônia se articula com aquele produzido pelos projetos hidrelétricos na região. Ambos se retroalimentam, em ordem direta e reversa. No entorno do Complexo Madeira, o processo de desterritorialização e de reterritorialização vai se consumando diligentemente, pelo grau de interpenetração dos Consórcios e conglomerados anexos com os aparelhos governamentais regulamentadores e fiscalizadores.
 
A apropriação do alto Madeira e a definição da forma predominante de seu uso se associa a estratégias simbólicas de universalização da forma tida como a mais "adequada" para utilização daquela territorialidade. A implementação célere e brutal das UHEs de Santo Antônio e Jirau se vale do alicerce objetivo de expropriações sucessivas, promovidas no bojo da formação territorial do estado de Rondônia. E ainda conta com o beneplácito subjetivo de uma população majoritariamente migrante, que, vítima e órfã de um modernização periférica, se dispõe a qualquer sacrifício em nome de seu "repatriamento" a qualquer dinâmica que remeta à centralidade altiva do "progresso", especialmente quando o objeto de sacrifício maior lhe pareça alheio e exterior, como as comunidades tradicionais que vivem ao longo do rio Madeira.
 
O controle e o uso compartilhado das águas e várzeas do rio Madeira pôde proliferar no interregno dos surtos de expansão mercantis. Exatamente por isso nunca foram objeto de políticas públicas que dinamizassem suas potencialidades horizontalizantes, que lhes providenciassem regularização fundiária, créditos preferenciais, programas de extensão de caráter agroecológico e infra-estrutura social. Depois de inserido no mapa dos grandes negócios, agentes econômicos e as arenas estatais por eles manejadas, o rio Madeira é estampado como providencial estoque/escoadouro de energia, commodity basilar, porque insumo das demais commodities que têm definido o ritmo de crescimento e o perfil produtivo do país.
 
Madeira: restabelecer a controvérsia e o contraponto
 
Podemos atestar que a defasagem entre os direitos e os interesses da população local e o processo de licenciamento e implementação das UHEs de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira foi voluntária e premeditadamente construída pelas empresas concessionárias, com anuência e colaboração do poder público.
 
Como bônus extra, os Consórcios Santo Antônio Energia (SAESA) e Energia Sustentável do Brasil (ESBR) podem vender 100% da energia gerada antes dos prazos previstos contratualmente (dezembro de 2012 e março de 2013, respectivamente). Os dois consórcios pretendem antecipar a geração em até 11 meses por isso e contam com a benevolência da ANEEL e do MME para tanto. Alucinados cronogramas de execução das obras são a contraparte da ausência de cronogramas físico-financeiros dos programas de compensação e de mitigação, da mais completa negligência para com a população que vive ao longo do rio Madeira e com seu meio ambiente. Se nem sequer as condicionantes da Licença Prévia foram cumpridas, como acenar com a emissão antecipada da Licença de Operação, sem que se consolidem mínimas salvaguardas sociais e ambientais?
 
Na direção contrária, o procedimento democrático elementar, frente ao conjunto de evidências de descumprimento flagrante de compromissos legais por parte dos Consórcios liderados pela Odebrecht e pela Suez, seria a suspensão da Licença da Instalação das Usinas de Santo Antônio e Jirau e o estabelecimento de um balanço rigoroso das irregularidades cometidas. Existisse um Ministério de Meio Ambiente com efetividade similar ao de Minas e Energia, ou um Poder Judiciário desincumbido de blindagens casuísticas, esta seria a única diretiva cabível diante de mais um desastre social e ambiental em curso na Amazônia.
 
Em paralelo e procurando explicitar toda a extensão dos danos já verificáveis produzidos por essas obras incondicionadas, propomos a criação de uma Comissão de investigação, composta por especialistas, representantes do Ministério Público Federal, dos movimentos sociais e da população atingida, para fornecer um quadro fidedigno da desestruturação social e ambiental que se dá na região do rio Madeira. Iniciativa que procurará colocar em pauta a revisão do licenciamento ambiental das duas usinas projetadas, bem com a rediscussão do projeto Complexo Madeira como um todo.
 
Seria tarefa prioritária dessa Comissão, em especial dos grupos de pesquisa universitários adjuntos, explicitar o novo modelo de investimento e de financiamento aplicado à construção das UHEs de Santo Antônio e Jirau, identificando atores-chave, suas metodologias obscuras e truculentas, de modo a possibilitar a responsabilização e co-responsabilização dos mesmos, em particular do BNDES.
 
É crucial que se exponha a célere territorialização corporativa de que é objeto a sub-região protocolarmente denominada "Sudoeste da Amazônia", no Plano Amazônia Sustentável(PAS), assim como as formas de atualização do bloco de poder inter-escalar que implicam em novas fórmulas hegemônicas. Em contraponto, é preciso demarcar as territorializações ribeirinhas, indígenas e camponesas resilientes, e também as pontes possíveis com dinâmicas disruptivas de base urbana. A questão central aqui colocada é: haverá um "nós" denso e representativo para evocar o significado dessa renúncia, renúncia ao Madeira, ao Xingu, ao Tapajós e demais rios amazônicos, a tudo que aflora, circula, brota e se multiplica com seus fluxos?
 
Luis Fernando Novoa Garzon é professor da Universidade Federal de Rondônia, membro da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e doutorando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ). Contato: l.novoa@uol.com.brEste endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email
 
Notas:
 
1) GARZON, L., F. Novoa. O licenciamento automático dos grandes projetos de infra-estrutura no Brasil: o caso das usinas no rio Madeira. Revista Universidade&Sociedade nº 42, p.37 a 58, ANDES, Brasília, junho de 2008
2) PBA da UHE de Santo Antônio, 2008 seção 22 p.5.
3) Parecer 029/2010. COHID/CGENE/DILIC/IBAMA, p.11

Conto de Natal – Maria e José na Palestina em 2010



por James Petras

Os tempos eram duros para José e Maria. A bolha imobiliária explodira. O desemprego aumentava entre trabalhadores da construção civil. Não havia trabalho, nem mesmo para um carpinteiro qualificado. Os colonatos ainda estavam a ser construídos, financiados principalmente pelo dinheiro judeu da América, contribuições de especuladores de Wall Street e donos de antros de jogo.
"Bem", pensou José, "temos algumas ovelhas e oliveiras e Maria cria galinhas". Mas José preocupava-se, "queijo e azeitonas não chegam para alimentar um rapaz em crescimento. Maria vai dar à luz o nosso filho um dia destes". Os seus sonhos profetizavam um rapaz robusto a trabalhar ao seu lado… multiplicando pães e peixes.
Os colonos desprezavam José. Este raramente ia à sinagoga, e nas festividades chegava tarde para fugir à dízima. A sua modesta casa estava situada numa ravina próxima, com água duma ribeira que corria o ano inteiro. Era mesmo um local de eleição para a expansão dos colonatos. Por isso quando José se atrasou no pagamento do imposto predial, os colonos apropriaram-se da casa dele, despejaram José e Maria à força e ofereceram-lhes bilhetes só de ida para Jerusalém.
José, nascido e criado naquelas colinas áridas, resistiu e feriu uns tantos colonos com os seus punhos calejados pelo trabalho. Mas acabou abatido sobre a sua cama nupcial, debaixo da oliveira, num desespero total.
Maria, muito mais nova, sentia os movimentos do bebê. A sua hora estava a chegar.
"Temos que encontrar um abrigo, José, temos que sair daqui… não há tempo para vinganças", implorou.
José, que acreditava no "olho por olho" dos profetas do Antigo Testamento, concordou contrariado.
E foi assim que José vendeu as ovelhas, as galinhas e outros pertences a um vizinho árabe e comprou um burro e uma carroça. Carregou o colchão, algumas roupas, queijo, azeitonas e ovos e partiram para a Cidade Santa.
O trilho era pedregoso e cheio de buracos. Maria encolhia-se em cada sacudidela; receava que o bebê se ressentisse. Pior, estavam na estrada para os palestinos, com postos de controlo militares por toda a parte. Ninguém tinha avisado José que, enquanto judeu, podia ter-se metido por uma estrada lisa pavimentada – proibida aos árabes.
Na primeira barragem José viu uma longa fila de árabes à espera. Apontando para a mulher muito grávida, José perguntou aos palestinos, meio em árabe, meio em hebreu, se podiam continuar. Abriram uma clareira e o casal avançou.
Um jovem soldado apontou a espingarda e disse a Maria e a José para se apearem da carroça. José desceu e apontou para a barriga da mulher. O soldado deu meia volta e virou-se para os seus camaradas. "Este árabe velho engravida a rapariga que comprou por meia dúzia de ovelhas e agora quer passar".
José, vermelho de raiva, gritou num hebreu grosseiro, "Eu sou judeu. Mas ao contrário de vocês… respeito às mulheres grávidas".
O soldado empurrou José com a espingarda e mandou-o recuar: "És pior do que um árabe – és um velho judeu que violas raparigas árabes".
Maria, assustada com o caminho que as coisas estavam a tomar, virou-se para o marido e gritou, "Pára, José, ou ele dispara e o nosso bebê vai nascer órfão".
Com grande dificuldade, Maria desceu da carroça. Apareceu um oficial do posto da guarda, a chamar por uma colega, "Oh Judi, apalpa-a por baixo do vestido, ela pode ter bombas escondidas".
"Que se passa? Já não gostas de ser tu a apalpá-las?" respondeu Judith num hebreu com sotaque de Brooklyn. Enquanto os soldados discutiam, Maria apoiou-se no ombro de José. Por fim, os soldados chegaram a um acordo.
"Levanta o vestido e o que tens por baixo", ordenou Judith. Maria ficou branca de vergonha. José olhava para a espingarda desmoralizado. Os soldados riam-se e apontavam para os peitos inchados de Maria, gracejando sobre um terrorista ainda não nascido com mãos árabes e cérebro judeu.
José e Maria continuaram a caminho da Cidade Santa. Foram freqüentes vezes detidos nos postos de controlo durante a caminhada. Sofriam sempre mais um atraso, mais indignidades e mais insultos gratuitos proferidos por sefarditas e asquenazes, homens e mulheres, leigos e religiosos – todos soldados do povo Eleito.
Já era quase noite quando Maria e José chegaram finalmente ao Muro. Os portões já estavam fechados. Maria chorava em pânico, "José, sinto que o bebê está a chegar. Por favor, arranja qualquer coisa depressa".
José entrou em pânico. Viu as luzes duma pequena aldeia ali ao pé e, deixando Maria na carroça, correu para a casa mais próxima e bateu à porta com força. Uma mulher palestina entreabriu a porta e espreitou para a cara escura e agitada de José. "Quem és tu? O que é que queres?"
"Sou José, carpinteiro das colinas do Hebron. A minha mulher está quase a dar à luz e preciso de um abrigo para proteger Maria e o bebê". Apontando para Maria na carroça do burro, José implorava na sua estranha mistura de hebreu e árabe.
"Bem, falas como um judeu mas pareces mesmo um árabe", disse a mulher palestina a rir enquanto o acompanhava até a carroça.
A cara de Maria estava contorcida de dores e de medo; as contrações estavam a ser mais freqüentes e intensas.
A mulher disse a José que levasse a carroça de volta para um estábulo onde se guardavam as ovelhas e as galinhas. Logo que entraram, Maria gritou de dor e a palestina, a que entretanto se juntara uma parteira vizinha, ajudou rapidamente a jovem mãe a deitar-se numa cama de palha.
E assim nasceu a criança, enquanto José assistia cheio de temor.
Aconteceu que passavam por ali alguns pastores, que regressavam do campo, e ouviram uma mistura de choro de bebê e de gritos de alegria e se apressaram a ir até ao estábulo levando as suas espingardas e leite fresco de cabra, sem saber se iam encontrar amigos ou inimigos, judeus ou árabes. Quando entraram no estábulo e depararam com a mãe e o menino, puseram de lado as armas e ofereceram o leite a Maria que lhes agradeceu tanto em hebreu como em árabe.
E os pastores ficaram estupefatos e pensaram: Quem seria aquela gente estranha, um pobre casal judeu, que chegara em paz com uma carroça com inscrições árabes?
As novas espalharam-se rapidamente sobre o estranho nascimento duma criança judia mesmo junto ao Muro, num estábulo palestino. Apareceram muitos vizinhos que contemplavam Maria, o menino e José.
Entretanto, soldados israelenses, equipados com óculos de visão noturna, reportaram das suas torres de vigia que cobriam a vizinhança palestina: "Os árabes estão a reunir-se mesmo junto ao Muro, num estábulo, à luz das velas".
Abriram-se os portões por baixo das torres de vigia e de lá saíram caminhões blindados com luzes brilhantes, seguidos por soldados armados até aos dentes que cercaram o estábulo, os aldeões reunidos e a casa da mulher palestina. Um altofalante disparou, "Saiam cá para fora com as mãos no ar ou disparamos". Saíram todos do estábulo, juntamente com José, que deu um passo em frente de braços virados para o céu e falou, "A minha mulher Maria não pode obedecer às vossas ordens. Está a amamentar o menino Jesus".


Tradução de Margarida Ferreira.

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